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Identidade & Encruzilhada Entre Os Afro-Brasileiros

 

João Barcellos

 

“O que me choca não é o facto de ver os negros do Brasil chicoteados republicanamente,

e tão duramente quanto no tempo monárquico, o que me choca é vê-los sem identidade brasileira:

 são negros do Brasil, e é no e pelo Brasil que têm lutar pela sua dignidade humana...”.  ABDULLAH, Céline.

 

INTRODUÇÃO

 

A primeira vez que ouvi alguém, no Brasil, dizer-se “afro-descendente”, em finais do Séc. XX, foi uma jovem bailarina, da Bahia, que explicava para crianças da Rocinha, favela do Rio de Janeiro, o que é “cultuar a alma negra no país onde nossos avós foram escravos”. Ora, estamos em 1996, e creio que este novo conceito mais atrapalha do que ajuda a Pessoa Negra Brasileira.

Enviei para Paris uma carta a perguntar a Céline Abdullah, moçambicana e sempre atenta a tais questões sociais, e a sua resposta veio de encontro ao pensamento que formulei diante daquela bailarina.

A pessoa negra no Brasil, hoje, nada tem a ver com aquela que nos Sécs. XVI e XVII foi escravizada e embarcada nos navios negreiros com destino às plantações de algodão e aos engenhos d´açúcar do Império luso; hoje, ser Negro na terra dos tupiniquins significa ser Brasileiro, significa vivenciar a Sociedade e a Cultura de uma Nação para a qual a Pessoa Negra escravizada foi obrigada a dar o suor e o sangue; também, significa batalhar por uma Condição Humana regionalmente localizada, i.e., os escravos são um passado e os seus descendentes diretos têm que aprender a viver a realidade sócio-cultural de uma Nação chamada Brasil, até por que a África está longe... Mas, ao que parece, muita gente negra prefere que, social e culturalmente, o Quilombo seja um algo político perene!

1- DA EXCLUSÃO À INCLUSÃO QUE NÃO INTEGRA

“[...] Até, acredita-se, com certa autenticidade abolicionista, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 13 de Maio de 1888, mas esse acto ‘ incluiu sem integrar’, como diz João Barcellos, pelo que ‘os escravos que o eram assim continua(ra)m´ por falta de estruturas sociais, políticas e administrativas” [idem].

1.1 - A anotação da Profª Céline, na sua carta citada, mostra como é pouco discutido o ato abolicionista do Império Brasileiro.

Ao contrário do que alguns historiadores dizem e escrevem, o Negro não passa de guerreiro africano a pacato lavrador na fazenda do colono português no Brasil, nem a Negra passa simplesmente a dócil “neguinha ama de leite”, o que, aliás, dizem e escrevem também dos povos americanos encontrados no Mundo Novo. A batalha do Povo Negro Africano tem início na sua África e disso é exemplo todo o trabalho político e diplomático da rainha N´Zinga, de Angola, que até à sua morte exigia, de Portugal e do Vaticano, o retorno dos africanos à terra-mãe.

A formação do Quilombo, na região de Alagoas, norte do Brasil, é uma das muitas manifestações das gentes escravas que, impossibilitadas do retorno a África, preferem fugir das senzalas, à sombra das casas grandes, e criarem as suas “monarquias livres” – uma expressão de alta relevância sócio-cultural e política da artista plástica Tereza de Oliveira [1]. E é verdade... Porque, “por cada Quilombo formado, eis que nasce um Soba, ou Rei”, explica ela, que conhece bem a África central, e percorreu, nos Anos 60, “os territórios brasileiros da África cativa”, como diz a Profª Céline.

A formação do Quilombo, ou território africano livre no coração do Império luso-vaticano [os padres católicos, e principalmente os jesuítas, são favoráveis ao nativo americano livre e ao negro africano escravo...], é “um reflexo da realidade social e política da própria África, onde, ainda hoje, o ideal republicano é uma miragem política, enquanto que renascem em cada aldeia novos sobas-reis”, como menciona às vezes o poeta J. C. Macedo [2], ao relacionar as questões afro-brasileiras. Assim, em cada Quilombo o acontecimento não é a Liberdade, em si, mas o retorno à “tradição” monárquica da família que deve, por impulso “divino”, governar o Povo. Nem é por acaso que a princesa Isabel é perpetuada nas homenagens das gentes negras nas suas manifestações folclóricas, como a Congada, e se esquece a rainha N´Zinga, essa sim, guerreira que procura a Liberdade da sua gente escravizada. Por isso é que o Quilombo transforma-se em território brasileiro da África cativa e não se expande politicamente para garantir uma luta com logística adequada à guerra contra o “...Império, que é mais um Império de colonos que, também, e pelas ações bandeiristas, já pensa no Brasil como Nação...”, como eu mesmo já disse em algumas conferências.

1.2 - A encruzilhada política da Gente Negra, no Brasil, tem lastro cultural na organização soba-tribal africana de cunho teocrático:

a) o Escravo foge da fazenda colonial e forma um Quilombo, onde assenta prioritariamente os que reconhece como da sua tribo nativa. Mesmo quando dezenas de membros de uma mesma tribo são dispersos pelas fazendas, para impedir rebeliões, eles se acham através de sistemas de comunicação próprios; logo, quando um foge, os outros sabem como e por onde;

b) no Quilombo, a organização é feita em torno um guerreiro que se torna soba-rei, como acontece nos Palmares, onde Zumbi assume esse Poder hierárquico, porque a fé do Povo africano centra-se na figura humana divinizada, o que não é diferente da cristã, da judaica ou da muçulmana;

c) o conceito de Poder tribal é completamente contrário à realidade política de um território continentalmente colonizado como o Brasil, e assim, o Quilombo não identifica politicamente a guerra em que se estabelece nem dá ao Escravo Fugido a tão almejada Liberdade, i.e., ele fica cativo de si mesmo, não consegue vislumbrar o Quilombo numa expansão territorial adequada a uma logística militar que dê acesso à ruptura definitiva com o colonialismo escravagista luso-católico;

d) acontece, então, um bloqueio psicológico na práxis da Resistência entre as gentes negras aquilombadas;

e) tal bloqueio já lhes é peculiar, e até os colonos sabem disso, uma vez que uns e outros se conhecem da África, onde cada Tribo é um Estado que dificulta a unificação política e administrativa do continente gerando contínuas guerras civis. Ao persistirem no mesmo erro de estratégia política, as gentes negras africanas escravizadas no Brasil perdem a possibilidade de, através da expansão territorial do Quilombo, encontrarem-se como Nação  –, nem percebem como a gente negra das Antilhas [República Dominicana], em 1791, consegue constituir-se Nação... E não percebem, porque vivenciam ainda o espírito tribal-teocrático, andam longe do espírito republicano do ser livre e progressista e pensam que cantar frases de efeito fácil [como “consciência negra”] é o máximo da cultura contra o racismo, mas, na verdade, isso é pura ilusão política.

Pensam alguns observadores, mas também investigadores da História da Escravatura, e eu entre eles, que a Pessoa Negra tem valorização em si mesma, ao contribuir para o Todo o humano, e não ficar isolada entre raças. Portanto, o que urge é um pensamento de nacionalidade entre as gentes negras do Brasil, ou vão continuar aquilombadas política e socialmente na Nação que tem elites mentalmente coloniais.

2 - DA RAINHA N´ZINGA À CONGADA

“Quero o regresso do meu Povo,

que foi escravizado e vive em trabalhos forçados no Brasil!”

As cartas diplomáticas da rainha N´Zinga, de Angola, às autoridades de Portugal e do Vaticano, mostram a sua consciência política diante da realidade dessa aberração mercantil chamada Comércio de Escravos, também praticada entre africanos.

Uma “[...] verdade histórica não pode ser escamoteada: os portugueses, e muitos cristãos-novos ligados à política colonizadora do Império, encontram nos Sécs. XVI e XVII um campo fértil para as acções de aprisionamento de negros a ser escravizados e levados para o Brasil, a pedido de abastados colonos locais, como Afonso Sardinha – o Velho, por exemplo, da Capitania de S. Vicente. Encontram na África um comércio de escravos entre negros que facilita o acto, além de fortalecer economicamente este ou aquele soba”, como escreve o poeta J. C. Macedo. Tal é a tradição da escravatura entre negros, que a própria N´Zinga, ainda princesa e não rainha, para conversar com uma autoridade portuguesa, ordena a uma escrava que se ajoelhe, alongue o corpo para o chão, e nela senta-se para dar início à conversa. E “não é hipocrisia. É o facto histórico que dá sustento à tradição das famílias poderosas na África de muitos sobas...” [idem].

Quando “[...] rufam os tambores dos congadeiros em louvor da princesa Isabel e de Nª Sª do Rosário, eles evocam os atos políticos e religiosos da rainha angolana N´Zinga, embora esses escravos livres da Congada não se apercebam”, na análise da Profª Tereza. Apesar de não abolir o sistema místico-escravocrata do Soba [ou N´gola, q.s. Rei/Rainha], N´Zinga, filha do famoso soba Bandi, administra esse Poder dando maior liberdade ao seu Povo, e não se pode negar aqui a importância dos padres católicos que a ensinaram a ler e escrever, além de introduzirem no seu reinado o culto a Nª Sª do Rosário. Por isso, quando digo que o culto religioso dos congadeiros nasceu ainda na África, eis a explicação historiográfica. Nas regiões brasileiras de Cotia e São Luiz de Paraitinga, no Estado de São Paulo, a Congada resume culturalmente o estado de espírito do Ser brasileiro independentemente da raça.

Resumindo, quando hoje, nos Anos 90 do Séc. XX, fala-se de consciência negra entre negros, o ato é falho, falta-lhe nas entranhas políticas a filosofia anarquista da vida que acontece como ela é, ou seja, deveria dizer-se consciência negra entre brasileiros, já que se trata de Gente Negra nascida e criada sob a Cultura que faz a Nação brasileira, também, porque a Consciência da Cidadania não conhece credo nem raça, é uma batalha humana. Falta à Gente Negra Brasileira uma identidade social: luta-se muito racialmente, mas esquece-se [mais ainda que no tempo do Quilombo] que o Brasil é raça negra, como é branca, como é morena, e que desta mistura se faz acontecer a Raça Brasileira; logo, o que está em causa mão é uma consciência negra, e sim uma consciência nacional brasileira.

Que os tambores dos congadeiros continuem a rufar na Sociedade brasileira, porque na Congada o espírito cultural que se manifesta chama-se Brasil.

1- OLIVEIRA, Tereza de   in “A Perpetuação Do Quilombado Nas Favelas Do Brasil, Ou, De Como A Ignorância Cultural Mantém A Escravatura”. Palestra, Grupo Granja, Sorocaba/SP-Br., 1996. 2- MACEDO, J. C.  in “N´Zinga: Uma Rainha Erudita D´Angola”. Ensaio. Coimbra/Pt, 1976. [O ensaio tornou-se palestra num encontro de anarquistas, em Junho de 1996, na cidade de Buenos Aires, Argentina, sob a orientação do prof. e artista plástico Figuera de Novaes.]

Notas: Casa Grande  Residência da família colonial proprietária de fazenda. Congada Bailado coreografado, originado de manifestações de negros durante a assinaturada Lei Áurea, em 13 de Maio de 1888. As principais manifestações artísticas aconteceram na região paulista de São Luiz de Paraitinga, e logo depois em Cotia. Quilombo Também designado por Mocambo, q.s. Povoação. Senzala Residência coletiva dos negros escravizados que servem na lavoura e nos engenhos. Soba  ou  N´Gola, q.s. Senhor do Reino, ou Rei. A administração do Soba reúne uma Tribo, ou Comunidade, e não raramente enfrenta guerras contínuas com outras tribos; os adversários aprisionados tornam-se escravos e moeda de troca, primeiro, entre os negros, e depois com os mercadores portugueses.

BARCELLOS, João – escritor e jornalista cultural. Paraty/RJ-Br., 1996.