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Genésio Pereira Filho

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O Silêncio dos Intelectuais

 

Davi J. F. do Vale Amado

 

O intelectual é um artigo de luxo “imprescindível”, mas se por um lado não é objeto de desejo da grande maioria, das massas, é, por outro, um bem supérfluo e caro das minorias que o consideram tão-somente para consumo ideológico. Nisso constitui-se a sua ação adstringente (subjugadora), pois assume para todos os efeitos papel caricatural e estereotipado na esfera do universal para tomar forma de algo inusitado na esfera da particularidade, da organicidade e da especificidade. As sociedades e seu pensamento fragmentaram-se, e o intelectual elidiu sua unicidade e sua universalidade, mesmo escoimando-se de suas imperfeições e ambigüidades, e funções que já não lhe cabem executar ou que não lhe atraem tanto: passa agora a debater-se entre um pensamento de intolerância (a chamada ditadura fundamentalista), em um dos extremos, e um pensamento relativista (ditadura do relativismo), em outro, postulando coercitivamente (ditadura de assumir-se como vértice da balança) em defesa de uma ideologia sincretista de conciliação e resiliência. O intelectual, epistemologicamente, é um paradoxo escatológico (referente à escatologia, doutrina sobre a consumação do tempo e da história), uma pessoa que pensa, e, como uma pessoa que pensa, prefere o embate, o apocalipse, a hecatombe, a eutanásia (o suicídio), um “memoricídio” lento que, ironicamente, o imortaliza, cingindo-lhe a cabeça uma máscara singular de que pode ser humano e metafísico a um só tempo, mas sem ter que justificar sua escolha, sua posição e sua herança filosófica, nem para si nem para as distintas platéias a quem se destinam seus insights de niilismo e loucura. Ora, as boas intenções dos “pensadores”, dos intelectuais, não lhes tiram o pejo da reatividade e nem o mérito da insurreição que desencadeiam. Uma simples analogia com o que eles produzem como ideais humanitários de causa e efeito, de significado e significante (lógica, dialética, estética...) é suficiente para adensar o seu intrínseco papel social de “construir e desconstruir”. Para o intelectual, pensar é transigir; é, também, transgredir, é dar essência a múltiplas formas de ação e inteligência que se vão miscigenando em cada ser pensante como corpos imunizados ou como entes ascendentemente estratificados. As inconsistências sociais, os desplantes no trato das questões sociais, e os disparates na condução dos programas humanitários não lhes imputam culpa, mas responsabilidade social. Em que pesem os direitos e os deveres de cada um e as liberdades de escolha, fica no ar, contudo, um ranço de omissão.

Pensadores, sociólogos, filósofos, ideólogos, literatos, críticos, líderes – e títeres – detêm, por privilégio e conquista, um espaço hierárquico superior na sociedade, pois os saberes que sobejam fazem-nos ascender em prestígio, em poder de planejar a vida pública e privada, em poder de implementar idéias e materializar sonhos. Essa visão sistêmica que conseguem do éthos, do páthos e do logos – a dialética social – torna-os mais dignos de merecimento e credibilidade. Como admitir então a indiferença dessa casta diante das graves crises das sociedades, quando se constata, por exemplo, que se gasta dez vezes mais em armas do que em ajuda humanitária; ou, ainda, em relação ao Brasil, de que os 10% mais ricos recebem 47% do bolo, e os 10% mais pobres apenas e tão-somente 0,7%? Está patente que a incômoda afirmação “a 90% a Ordem e a 10% o Progresso” é um fato, democrático e discriminatório. Que respostas práticas dariam os intelectuais a essas gritantes incongruências? Ironicamente, eles representam ideais de luta, de esperança, de arrojo, e o resgate da dignidade humana, dos direitos inerentes a todo cidadão. Basta descobrir-lhes – talvez – o bom humor ou o azedume que destilam.

As sociedades globalizantes, em um constante e profundo processo de reformas, sentem-se, quem sabe, oniscientes para conduzir o seu destino múltiplo e particularizado, preterindo, sutilmente, quem pense ou se heroifique por elas, ou melhor, quem não se identifique com elas. Não que essas sociedades ressintam-se de marcar seus passos de forma independente – um corpo de características compactas não pode soerguer-se fragmentado –, mas assim como o intelectual, que sempre dava o tom pragmático, imposto com tato conservador e absolutista, e era responsabilizado pela falta de coalizão para a formação de um pensamento coletivo, elas (as sociedades) arriscam-se em exceder-se pelos descaminhos de sua vaidade empírica e rotulizada pela mídia, pouco se atendo aos ditames de uma consciência melhor produzida e capaz de reforçar-lhes as determinações. Tudo se constrói com uma aparente revelia e apatia nesse contexto, e se isso faz sentido também para o construto dos diferentes indivíduos dos diferentes estratos sociais – uma vez que a verdade manifesta-se multifacetada, incongruente e não mais com o halo absoluto de um fato construído cientificamente, ou ditado por instituições e indivíduos que se arrogam a supremacia de socializar a mesma verdade a todas as classes como uma receita infalível –, somos, digamos assim, tomados por uma inconveniente certeza de que cada segmento social e os indivíduos que o(s) compõem estribam-se em um sem-número de verdades absurdas (negadas e aceitas), mas igualmente coerentes, que podem conduzi-los a diferentes fins sem amargar a desilusão de que andam à deriva para chegar a lugar nenhum.

O intelectual deixa de ser visionário na medida em que busca guarida no pensamento capitalista-burguês, para atender demandas de um tempo de consumo e futilidades, e de exclusões, demandas proclamadas como essenciais e insubstituíveis pelos detentores do poder político-econômico, com apelo egoístico e elitista. A humanidade (o homem com os seus valores) de repente deu-se conta de que mesmo combalida, sem rumo, e penalizada pela irracionalidade de seu devaneio permissivo, quer caminhar com suas próprias pernas e ser responsável pelos seus próprios atos reativos e/ou revolucionários. Mesmo em seu torpor e alienação – sujeição ao que der e vier –, as sociedades alvorotam os próprios líderes que as seduzem, e fazem-se mudas e moucas, para não dizer (reproduzir) o que não querem ouvir e para não ouvir o que não querem dizer. É bem verdade que supõem sustentar-se no próprio desatino, sorvendo de seu substrato uma espécie de transcendentalidade que lhes imprime um caráter altruístico e não de inconsistência e inconseqüência. O silêncio do intelectual alimenta-se desse eco estridente, de horror e de gozo, que se estende em todas as dimensões, absorve o impacto de um sutil menosprezo coletivo por suas idéias, pelo seu pensamento e por sua inação – que não mais produzem efeitos de regeneração no tecido social e que intuem para a desordem com palavras de ordem, ou para a ordem com a indisciplina e a insubmissão.

O silêncio que apavora os pensadores, os produtores de idéias, os filósofos, os sociólogos, os ideólogos, são os reflexos de um caos generalizado que se instaurou em todas as camadas sociais, mesmo nas mais conservadoras e economicamente estruturadas, que não o podem dimensionar e nem dissipar, mas que o sentem soar e reverberar incomodamente, fazendo-os ressentir-se de não haver respostas que os satisfaçam, mas sim e tão-somente incertezas que os banalizam em suas convicções – colhem, por não se predestinarem à fatalidade da ordem ou da desordem, a dor de um silêncio atroz que os detrata e os repudia como mentores e/ou líderes das massas. O que ocorre, determinado pela sutura mal feita dos fatos que se desencadeiam, tidos como “inconsúteis” – em que estão inseridos –, é que as causas desses fenômenos não geram efeitos prontos, pontuais, estanques, mas sim um non sense de situações estagnantes e paradoxalmente dinâmicas, desalinhadas, no entanto, com o perfil de um pensamento consumado como sensato e abrangente. As sociedades e os indivíduos que as compõem são em si mecanismos de transformação, reproduzem-se e transformam-se via de regra como seres inanimados, mas que têm vida própria e também sofrem as influências de outras vidas que se corporificam como “coisas”, células sociais independentes e ao mesmo tempo intrinsecamente ligadas umas às outras.

Dissociar esse fim caótico que não dá conta do que se pensa e do que se faz – que mantém em desequilíbrio as teorias e as práxis sociais –, tentando encetar-lhe um dinamismo ou uma ordem que não reflete, seria o mesmo que tentar estabelecer coerência recíproca e imutável, e igualmente intensa e impulsiva, entre a inércia da humanidade e a inércia do universo.

Os intelectuais não têm a volatilidade dos acontecimentos sociais, e mesmo que soubessem prevê-los e entendê-los no espaço e no tempo certos, interagindo inusitadamente com idiossincrasias irrefutáveis, teriam como resposta a inconsistência à sua consistência, uma realidade virtual/aparente à realidade factual/concreta. Nesse sentido, pode-se afirmar que não há como se manter controle sobre aquilo que se rege e se manifesta por imanentismo, ou desestruturar aquilo que já vem e se manifesta em si estruturado, ou, ainda, supor que se possa dominar as forças naturais com as leis do pensamento, não pelo menos com motes cabalísticos de “abracadabra” e “fiat lux”. O intelectual de verdades prontas para o consumo, como um prato feito diante dos olhos de um faminto, ainda é um profissional (ente) requisitado, mas a efemeridade de seu produto mental denuncia-o como vilão, charlatão – a dissolução de seu pensamento é instantânea (as idéias, descartáveis, não têm vida útil longa), tão logo cessem os efeitos de miragem e pirotecnia utilizados em sua construção. Mas assim também são os profetas (divinos e humanos), os cientistas, os decodificadores de enigmas, os secularizandos, os relativistas, os aprendizes e mistagogos; os fundamentalistas, os criacionistas, os intolerantes de toda ordem, os imperialistas cristãos, os radicalistas sem causa.

Os tempos são outros, dizem, mas o “chicote do saber” ainda é uma prescrição de domínio usual, muito embora o encantamento pela opressão não mais opere a transformação que se deseja, nem os seus efeitos mágicos cumprem o mítico e místico papel de cura física e espiritual. Os intelectuais modernos encontram-se numa encruzilhada, e a opção de seguir um caminho certo ou errado, como parâmetro, é de difícil escolha – quando na verdade todos os caminhos levam à Redoma Pós-moderna da Dúvida –, mas, com certeza, eles escolherão (e nós também escolheremos) a via que leva de volta às extenuantes experiências alquímicas, à reinvenção do humano e do inumano – os pensadores são alquimistas por natureza, e vivem com sofreguidão a tortura de seu pensamento lógico sob os efeitos da forja científico-relativista, como se as descobertas empíricas não lhes satisfizessem o apetite estóico (impassível ante a dor e a adversidade) de também se descobrirem reinventados na verdade que tanto procuram e não encontram. E há um outro porém... o intelectual é um personagem de muitas facetas – não que isto o corrompa ou o torne corruptível: mostra-se quase sempre com um discurso demagógico e reativo (entre o servil e o servir), porém com uma mensagem libertária e solidária (chama, às vezes, as dores do mundo para si, mesmo que seja para colher os louros de seu pensamento maquiavelista). A sua verdade – apenas uma inquirição empirista – sustenta-se em um tênue fio de baba exposto ao sol: mais que a fantasia e a miragem, esse espectro tem a forma de uma assombração etérea – o mundo volátil pós-moderno, uma meleca gosmenta que nos sufoca, diluindo-nos numa espécie de massa amniótica para nos retribuir a vida. Ora, somos levados a concordar que até mesmo a cientificidade do pensamento humano ainda sofre a entropia de “métodos divinos”, já que Deus se intromete em tudo; se não existir, porém, será responsabilizado e execrado por tudo o que se crê em vão. Digo Deus, o lógico, o alquímico-mór, pois que em seu nome sustentam-se não só a teoria do universo, mas também o penoso exercício da vida.

Mas os crentes artesãos da fé alquímica também não se desvencilharam do fim que os atrai como abismo; a inércia da humanidade (não mais aquele estado mórbido de lentidão, mas a mutante vocação para a destruição), embora seja vivida como um estágio consciente, provocará estragos fenomenais no decurso da história, por longo tempo, e por um extenso espaço, a perder-se de vista. Não é de se estranhar, em face desse miserê de dois pesos e duas medidas, a timidez dos intelectuais (circunscritos no vértice da balança), das pessoas que pensam, dos cientistas sociais, dos cientistas políticos, dos teólogos (aliás, os teólogos nunca cessaram de haurir suas idéias sinistras), dos “ditadores do relativismo” e dos “ditadores fundamentalistas” (se não fossem tão exigentes consigo em querer fazer dos outros o que não são e não querem ser, exerceriam maior influência no desenvolvimento harmonioso do homem, no seu fazer-se e desfazer-se), e o silêncio dos protagonistas da catástrofe humana – políticos, banqueiros, empresários, industriários, fazendeiros, madeireiros, pastores, clérigos, escritores, lobistas, marketeiros, proletários alienados, terroristas maniqueístas etc. –, todos assumidamente “intelectuais capitalistas extrativistas” (matam a própria criação/inspiração na origem, secam a fonte em que bebem) e dos fabricantes de idéias redentoras que não redimem e nem salvam. Nós, que nos devotamos como espectadores, de camarote, ao sabor dessa maré de turbulências, desse revés de ânsias e incertezas, sabemos, intuitivamente, que não serão eles, os “intelectuais”, não essa espécie, que nos tirarão do buraco, do sufoco, que nos estenderão a tábua de salvação. Talvez seja a hora exata de abandonarmos o navio, para nos afogarmos no oceano do que sabemos e não sabemos (a ditadura de não aceitarmos o muro como assento), tomados de um arroubo de coragem e insensatez, de paixão e loucura, de amor e desespero. “O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano” – Isaac Newton.

O tema deste artigo é uma alusão ao ciclo de conferências Cultura e Pensamento em Tempos de Incerteza que está sendo realizado pelo SESC e o Ministério da Cultura, com a participação de importantes pensadores como Marilena Chauí, Sérgio Paulo Rouanet, Marcelo Coelho, Francisco de Oliveira, José Raimundo Maia Neto, Jean-François Sirinelli, Antonio Cícero, entre outros. As conferências desse importante evento estão sendo realizadas concomitantemente de 22 de agosto a 04 de outubro/05 nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador.

Davi J. F. do Vale Amado é poeta, escritor, professor de Sociologia e autor de diversos livros; o mais recente "Contestado – Pelados X Peludos, uma batalha ainda não vencida", editado em 2003 pela Lei Federal de Incentivo à Cultura.