Na Lata do Poeta

Sérgio Valente

Antes de Tudo é o quarto livro individual lançado por Ludimar de Miranda, poeta da vela e da vida. Quem terá esquecido aqueles versos tão cortantes, publicados em Solarágua, no poema A Vela e a Lida? De corda tensa, arco no limite da curvatura, flecha certeira e de longo alcance. Eis o cartão de visita de Ludimar de Miranda: Oh, Senhor! / Por que o sopro / que agora / a luz da vida / não é / mais fraco / que o sopro / que sopra / a luz da vela? / A vela / se apagas / acendemos outra / A vida se pagas / acendemos / a vela.

Ainda que em Antes de Tudo a corda não atinja tão plena tensão, o poeta continua cantando belamente a vida e a morte, o amor e a saudade. Às vezes com alguma graça, às vezes sem graça nenhuma que a vida é mesmo assim. De modo que não se espere encontrar linearidade em Antes de Tudo. O poeta é, como ele próprio admite, volúvel. Volúvel e bem humorado, há que se acrescentar. A corda ora é tesa, ora é frouxa, a flecha voa longe ou perto, atinge a superfície ou o subsolo mais profundo, sempre conforme a distância entre o arqueiro e o alvo. Às montanhas de alguns pares de versos bem sentidos podem suceder planícies que beiram o gracejo. Hoje senti vontade / de te ver de novo, / desceram dois veinhos d'água, / um porque te amei, / e o outro porque / ainda te amo (pág. 37). Há pessoas tão vazias / que o estádio do Pacaembu / se lotaria de tristeza (pág. 42).

Ou: Sinto o peito apertado, / fecho a mão, quero chorar... / Sinto tanto, por que sinto tanto / se sou tão volúvel no amar? (pág. 76) Sou, sou, com muita emoção, / da ilha, bela ilha / de São Luiz do Maranhão (pág. 77).

Ou ainda: Silêncio, há gosto / de poesia chegando! / Silêncio, deixe a poesia chegar. Silêncio à poesia. / Ela vai embora, / ela quer voltar... / Então / silêncio... (pág. 79) E logo a seguir: Se eu soubesse que o sabiá / com sua sabia sapiência / saberia da minha dor, / pediria ao sabiá que cantasse / a minha ventura de perder / o que amava e não sabia. (pág. 80).

Ludimar de Miranda é por assim dizer um poeta bem humorado, em que pese a freqüente opção por temas densos, tintos de morte e saudade. Às vezes, ele brinca de quicar as palavras, feito o jogador de futebol quando faz embaixadas no treino. Às vezes produz intencionalmente alguns versos que beiram o tautológico, com o claro objetivo de sublinhar a lógica e jogar com o ritmo: Ó minha saudade / fica com ela / ó saudade dela. Quem / mente / à / mente / não / mente / à / mente / somente / a / si (pág. 71). A tristeza dele era / tão triste / que sua / tristeza estava / triste de / tanta tristeza (pág. 108). A rigor, pouco importam essas nuanças, a lira sempre salva o poeta.

Eis um bom exemplo de salvação: A porta está aberta / e eu estou preso / não / posso fugir / de mim / mesmo. (pág. 107). Ou este outro: É noite e está claro, / a noite é escura. / E eu, poeta, declaro / que o amor tudo cura. (pág. 116).

Se bem que, dizendo de outro modo, talvez muito importem as nuanças. Pois quem saberá das intenções do poeta? Se pretendeu sufocar amarguras profundas com sorrisos breves. Ou se pretendeu, a fim de realçar os sabores, alternar entre o sal e o açúcar o tempero de seus versos.

Ademais, nunca é demais lembrar as advertências do atual Ministro da Cultura, Gilberto Gil, na canção Metáfora: Deixe a meta do poeta, não discuta / Deixe a sua meta fora da disputa (...) não se meta a exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata / Na lata do poeta tudo-nada cabe”.

Sérgio Valente é contista, romancista, membro da UBE, autor de Deus Protege os Cães Perdidos e Outros Achados (Editora Olho D'Água) e A Solidão do Caramujo (Editora Toda Prosa).