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Morrer para Renascer

 

Waldomiro W. Peixoto

 

Sempre é interessante revisitar a obra de um escritor importante. Acabamos de reler O Visitante, primeira obra de Osman Lins, publicada em 1955, e o autor continua a nos surpreender pelo frescor da narrativa, já com frases e capítulos curtos, narrativa densa, ações aceleradas, prenunciando a modernidade do grande romancista de O Fiel e a Pedra, embora ainda não revelando o estilista original e revolucionário de Nove Novena e Avalovara, provavelmente único em língua portuguesa.

O Visitante é um romance de estrutura tradicional, seqüência narrativa linear e sem surpresas, mas já com alguns fortes sinais de um jeito novo de contar histórias. Por exemplo, chama atenção a familiaridade com o teatro: poucas personagens, unidades espaciais fechadas e interiores, predomínio mais de ações internas que externas caracterizando-se como romance introspectivo (muito comum em sua produção posterior), personagem central muito reflexiva, presença freqüente de monólogo, e, quando há falas entre personagens, estas se dão sempre apenas entre duas pessoas.

A trama gira ao redor da destruição da vida pacata e puritana de Celina provocada por Artur, seu contraponto. Emblemático é o versículo que abre o romance (“Insensato, o que tu semeias não é vivificado, se primeiro não morrer.” – I Cor 16.36), porque Celina, a virtuosa, é destruída por  Artur, para ressurgir, no final do romance, mais verdadeira e forte, marcada e amadurecida pelas adversidades resultantes do relacionamento conflituoso entre ambos. Artur opera capciosamente na vida dela como o mal que, insidioso, vai minando o bem para destruí-lo, sem conseguir, no entanto, completar seu intento. Não há, entre ambos, o embate maniqueísta entre mal e bem; este termina por prevalecer sem aquele desaparecer completamente. É um romance, portanto, que não tem herói nem heroína. Artur e Celina se contrapõem, mas não se excluem; antes, funcionam como se fossem justificativas para a vida vazia de ambos. Assim, suas existências insípidas vão se compondo como se viver para eles fosse uma inevitável imposição.

Artur, professor decadente, medroso, inexpressivo, infeliz em seu casamento, a partir do momento em que leva o filho para Celina lhe ministrar aulas particulares, vai insidiosamente entrando na casa e na vida dela como se isso fosse a tábua de salvação de sua vida medíocre. Celina, por sua vez, virtuosa, virgem e solitária, torna-se fácil presa de Artur, que, maquiavelicamente, vai tomando e se apoderando de seus sentimentos, de sua vontade, de seus amigos e, por fim, de sua vida.

O sentimento proibido entre os dois evolui até uma gravidez indesejada que, impossível de aparecer aos olhos da comunidade provinciana e moralista, é  interrompida por um aborto em cidade distante da em que viviam. Onde Celina lecionava, tinha amigos desde a infância, freqüentava o padre e os beatos, inaceitável se tornaria o romance proibido, muito menos uma gravidez de mãe solteira com um homem casado, ambientação perfeita para exacerbar os conflitos e o sentimento de culpa dela.

Na relação conflituosa, ela é quem mais sofre, pois é nela que o processo de destruição se acentua. Ele, covarde, não enfrenta a situação e arma uma trama cruel e caluniosa contra Rosa, uma professora amiga de Celina, até sua destruição total também. Artur inventa uma doença para Celina se afastar e abortar e lança sua perfídia contra Rosa, até que esta seja expulsa da escola e se afaste completamente de Celina, de forma tal que seu casamento fique protegido e, ao mesmo tempo, livre das responsabilidades que deveria assumir com Celina.

Depois do aborto, o retorno de Celina, sem que a cidade se dê conta do que teria acontecido, deixa Artur aparentemente sem punição, mas, por outro lado, sem o seu amor. Celina, qual Fênix, renasce das cinzas e retoma as rédeas de sua vida. Artur tinha casca de um jeito e miolo de outro, ao contrário dela, que era pura, virtuosa e autêntica. O que aconteceu entre ambos destrói a mulher fraca e indefesa para fazer brotar e desabrochar a forte, verdadeira e decidida, o oposto dele, como a acentuar a fragilidade de seu caráter linear. Celina, de caráter mais dinâmico e humano que ele, revela comportamentos duais, ora frio e semimorto, ora vivo e sensual, plenos de devaneios sexuais contrabalançados por freios morais, de raiz religiosa, adquiridos nos bancos e confessionários da Igreja. A rigor, Celina é a personagem rica da trama por apresentar picos e depressões na evolução de seu conflito, até sua ressurgência apoteótica no último capítulo.

Celina, a princípio, por paradoxal que possa parecer, se impressiona com o caráter frouxo e pouco sedutor de Artur, divaga, pensa, reflete e mergulha em um oceano de inseguranças. Artur é linear, o mesmo do começo ao fim da trama. É verdade que se vai revelando aos poucos, mas seu caráter não muda; embora suscite um certo mistério durante a narrativa, à medida que se revela é previsível e não oferece surpresa ao leitor.

A estrutura do romance é tripartite. No primeiro caderno há a apresentação da trama, o estabelecimento da invasão insidiosa de  Artur na vida de Celina, a relação de amantes ainda não é muito clara, estabelece-se um nível de devaneios e sugestões com criação de certa tensão entre os dois, um quê de sensualidade, as análises psicológicas são ainda meio diluídas, o conflito entre eles já está delineado, mas ainda longe da atmosfera que virão nos próximos capítulos. O segundo caderno é de reviravoltas, de rupturas, de revelações e do nascimento da verdade entre os dois. Causas e efeitos praticamente caminham juntos e se acentua o entrelaçamento de ações psicológicas que antecipam a força e a atmosfera narrativa. Um toque machadiano se revela, bastante claro, no momento em que Artur dita uma carta a Celina destinada a Rosa e que faria parte da perfídia que atenderia a seus planos: “Parecia quase alegre; e enquanto ditava a carta, chegou a mesmo sorrir uma vez.” – pág 91). A trama, temperada de traição, atinge seu ápice neste segundo caderno aberto pela muito apropriada lamentação 3.62 de Jeremias: “Os lábios dos que se levantam contra mim e as suas imaginações contra mim todo o dia.” Outra coisa não faz Artur todo o dia predispondo Celina contra Rosa para alcançar seu intuito: ser amante de Celina sem, ao mesmo tempo, sofrer as conseqüências de seus atos. Isso fica patente, posteriormente, no conselho que dá a Celina quando a induz ao aborto: “Se formos hábeis... Quer um conselho: confesse-se por lá. Retome sua vida habitual, ao voltar. Nunca mais me chame aqui. Quando convier, quando for oportuno, eu virei.” (p.140). O terceiro caderno mostra Celina após o aborto, cheia de conflito e culpa, mais madura e analítica, consciente de seus atos e sua situação, mais atenta para as verdades que terá de enfrentar: “Tinha, no entanto, que suportar a sua vida, até que um dia, num ato de funesta crueldade, abafassem sua corrução e esquecessem-na.”(p.145). Celina tem a coragem de enfrentar sua nova realidade, encara a reação de sua gente com a cabeça erguida (“Não, nenhuma falta era imperdoável. Pelo menos disso estava livre.” (p.145). Rosa e Celina, uma morre de calúnia, a outra ressurge das cinzas. No centro das causas, Artur e seu caráter amoral e vida insípida, se eximindo das responsabilidades dos males que causara. Sobre a morte de Rosa, que morrera por conta da calúnia e da difamação de Artur, este afirma para Celina: “Eu, por exemplo, não tive nenhum remorso. E você, naturalmente, não irá preocupar-se com isso.”(p.152). Nesta terceira parte, os capítulos são mais curtos e densos, os diálogos são rápidos, há um certo frenesi narrativo que faz os nós da trama evoluírem rapidamente, aumentarem a tensão e prenderem o leitor, este tenso com o desenrolar dos acontecimentos.

Os aspectos religiosos saltam em forte em simbologia: Artur personifica ora o mal, ora a amoralidade; Rosa, a sacrificada; Celina, a pagadora, com a própria dor, da culpa, para ressurgir mais forte e mais humana (“Seus dias solitários eram impregnados de um desalento consumidor: cumpria-os como um castigo.” – p.187) Celina, marcada a ferros, ressurge amadurecida e reflexiva. Até onde estaria mais certa que antes? Até onde ter sido acordada para a vida pelo sofrimento a colocara mais próxima da verdade? Surgiam verdades, cujas certezas valeriam a pena, ou era impositivo vivê-las? “Sacode-te do pó, levanta-te, desata a cadeia de teu pescoço, cativa de Sião... O pecador se alegra: eis o perdão” é uma das alusões bíblicas que confortam Celina, dão-lhe novo alento e novas perspectivas e tornam a vida suportável.  

O último capítulo, apoteótico, é teatral. Artur, sob chuva torrencial e céu completamente escuro, entra na casa de Celina e tenta, mais uma vez, se apoderar de seus sentimentos e seduzi-la. Ela quase sucumbe movida por um sentimento de vingança: um segundo filho seria a destruição de Artur. Mas ela resiste. Artur confessa toda a trama insidiosa movida contra Rosa para aplacar a ira e o sentimento de fracasso que o moviam. Celina, em convulsão, descobre em suas entranhas a luta entre o amor e o ódio e se liberta de vez do sentimento que a prende a Artur. “Uma dor cingiu-lhe os rins, punhal em fogo. O trovão estalou, e a presença do pai fez-se vívida no quarto (...) Mas era como se  pressentisse, na escuridão do túmulo, que a raiz de uma flor tocava o seu coração destruído, ligando-o à luz do Sol.”(p.189). Observe o leitor a maiúscula. Sob a Luz, que sugere revelação, Celina se revolve no leito, dilacerada, mas liberta para sempre. Não existe ruptura sem dor.

Outras obras do autor viriam. “... outro fator me atinge: como escritor, ainda havia em mim, quando o compus, uma brandura que não mais existe – e, se existe, é infiltrada de veneno. Não que eu visse candidamente o mundo. Aí encontramos, apesar da minha experiência curta, uma visão o seu tanto sombria da nossa condição. Nada, porém, se vê – nos temas, nas palavras ou nos ritmos – que denuncie a minha cólera futura.” Estas são palavras do próprio autor na introdução de Os Gestos, reedição de 1975, mas que servem como luvas para O Visitante, até porque estas duas obras foram produzidas simultaneamente, conforme o próprio autor nesta introdução. É certo, no entanto, que o escritor de grande talento já se revelava neste romance tenso de fôlego. As futuras obras comprovariam suas palavras acima.

Waldomiro W. Peixoto é contista, poeta e membro da Academia Ribeirãopretana de Educação e da Academia Ribeirãopretana de Letras.