
Fagundes Varela
Flor do Maracuj?/span>
Raquel Naveira
O Romantismo dominou na literatura brasileira de 1836 ao fim da década
de 1870 e deixou fundas raízes no imaginário e na alma do brasileiro que
sobrepõe o sentimento ?razão, o coração ao cérebro.
Um poeta
romântico que sempre admirei, precursor da poesia social e da poesia
abolicionista, gênio aflito e inspirado, foi Fagundes Varela.
Luís
Nicolau Fagundes Varela nasceu em Santa Rita do Rio Claro, Rio de Janeiro, em
1841, e faleceu em Niterói, em 1875, de congestão cerebral.
Teve o
poeta uma infância nômade. O pai era juiz. J?rapaz, procura São Paulo para completar
os preparatórios e ingressar na Faculdade de Direito. Entrega-se de corpo e
alma ?boêmia. Em 1862 casa-se com Alice Luande, filha?do dono de um circo; mas no ano seguinte,
morre-lhe o primeiro filho.
Entrega-se
ainda mais?ao álcool. Em 1865 muda-se
para Recife. Morre-lhe a esposa. Abandona os estudos e passa a viver de
fazenda em fazenda e pelas cidades próximas ?cidade natal. Nem o segundo
casamento com a prima Belisária o corrige.
Fagundes
Varela foi um poeta religioso. Sua obra máxima ?Anchieta ou O
Evangelho nas Selvas, onde Anchieta narra aos índios a vida, paixão e
morte de Jesus. Deus ?uma presença constante na obra do poeta; a Bíblia, o
seu grande livro. Esta religiosidade era refúgio para os seus sofrimentos, para
a infelicidade, sua constante companheira.
Outro
aspecto importante da obra do poeta foi o sofrimento moral que elevou sua
inspiração ao máximo. Seu filho Emiliano, morto com três meses de idade, foi
tema do Cântico do Calvário, a mais bela e perfeita elegia escrita em
língua portuguesa.
O
poeta de vida ingrata foi insuperável como paisagista. Seus motivos ligados ?
natureza vão dos grandiosos como o mar, as serras, o Amazonas, aos mais
rústicos como o mato virgem, o brejo, o bafo do sertão, a choça, a viola do
tropeiro, passando pelos mais delicados como o sabi? a rola, a borboleta, o
vaga-lume. Como esquecer o poema em Fagundes Varela louva a beleza da flor do
maracuj?
Cresci
ouvindo meu av?dizer que a flor mais linda era a flor do maracuj?span
style="mso-spacerun: yes">?e chamar-me assim quando sua intenção era
me alegrar com seu carinho e delicadeza de homem sensível, que copiava poemas
com caneta tinteiro numa caderneta de capa cinza.
Transcrevo
o inesquecível poema de Varela:
A FLOR DO
MARACUJ?o:p>
Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinh?
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabi?
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracuj?
Pelos jasmins, pelo goivo,
Pelo agreste manac?
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravat?
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracuj?
Pelas tranças da mãe-d‘água
Que junto da fonte est?
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ub?
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracuj?
Pelas azuis borboletas
Que descem do Panam?
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincor?
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracuj?
Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinh?
Pelas florestas imensas
Que falam de Jeov?
Pela lança ensangüentada
Da flor do maracuj?
Por tudo que o céu revela!
Por tudo o que a terra d?o:p>
Eu te juro que minh‘alma
De tua alma escrava est?...
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracuj?
Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em ?a ?o:p>
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos ouve, sinh?
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracuj?
A minha
casa tem uma trepadeira linda, coberta de flores de maracuj? que se abrem ?
tardinha em perfume e miasmas lilases.
Como
iria dar uma aula sobre Fagundes Varela aos meus alunos de Letras,
preparei-lhes uma surpresa: uma transparência com o poema e uma caixa, onde
recolhi algumas flores do maracujazeiro. Depois de lermos juntos o poema,
entreguei a eles as flores e pedi para que as observassem, que sentissem o
seu cheiro adstringente, que conferissem sua coroa de franjas, suas chagas
místicas como as do Cristo. Foi maravilhoso! Através das portas da sensação,
atingimos a essência dessa flor e do mistério da Poesia .
Um dia
depois dessa aula, recebo um e-mail do escritor e jornalista Jos?Nêumanne
Pinto. Era uma resenha?para o Caderno
de Cultura do Estadão, em que ele comentava sobre o livro Fagundes Varela
- Melhores poemas, seleção de Antônio Carlos Secchin, Editora
Global. O livro pertence ?coleção Melhores Poemas, coordenada pela
escritora Edla Van Steen.
Nêumanne
explica que o poeta e crítico Antônio Carlos Secchin, membro da Academia
Brasileira de Letras, estava prestando um serviço inestimável ?memória de
Fagundes Varela. A obra de Varela ficou espremida entre o fulgor dos
antecessores Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo e Gonçalves Dias e o genial
clamor de seu sucessor Castro Alves. Varela passou assim a ser julgado poeta
de pouca intensidade. Julgamento injusto e reducionista, pois Varela
representa uma voz de autonomia e inconformação nos quadros de nosso
romantismo, com instantes inigualáveis de ascensão e pressão lírica. Varela
foi um sensitivo que sofreu em alta tensão todas as experiências, fazendo com
que cada transe de sua vida assumisse tonalidades?puras e extremas.
“O que
Secchim fez ?digno de nota? afirma Nêumanne, pois o professor carioca
percebeu na poesia de Varela “a mais complexa construção literária do
romantismo? Secchin e a Editora Global resgataram um poeta importante?“nesta era da insensibilidade crônica e do
imediatismo consumista e comodista burguês?
Ser poeta
?estar antenado a um inconsciente coletivo, a ondas de esforço energético!
Como poderia imaginar diante do muro florido e dos frutos ainda verdes de
maracuj?que?tantas pessoas estavam
se lembrando de Fagundes Varela, dos seus cantos ora sombrios e místicos, ora
alegres e naturistas?
Pensando
em todas essas coisas escrevi este poema:
?/span>FLOR DO MARACUJ?o:p>
A
trepadeira cobre todo o muro
E, ?
tardinha,
Antes do
sol se pôr,
Abre-se,
misteriosa
E
mística,
A flor do
maracuj?
Pétalas
verdes por fora,
Brancas por
dentro,
No
centro, uma coroa de franjas
Sobre a
mancha roxa,
De sangue
e azul macerado.
Como ?
bela a flor do maracuj?
O poeta
romântico
Cantou-a
em rimas em “a?
Limito-me
a admir?la
Como o
coração doído
E um leve
arfar.
Zum,
zum...
Abelhas
negras
Pousam
sobre as folhas
E
preparam os frutos
Cheios de
polpa amarela,
Poderoso
sedativo
Que
acalma os nervos
Como dose
de rum.
.../
Nessa
mistura de mormaço e poente
A flor do
maracuj?o:p>
D?
impressão de sofrimento,
De
êxtase,
De amor
ardente;
? provavelmente,
A flor de
Romeu e Julieta,
Do
martírio de Cristo,
Do manto
espiritual do poeta.
A flor do
maracuj?o:p>
Excita,
Atrai,
Cálice de
vinho
Por onde
escorrem
Lágrimas
violetas.
A flor do
maracuj??tão bela
Que me
faz suspirar
De
tristeza,
Inexplicável
padecimento
De quem ?
sempre incompleta!
BIBLIOGRAFIA:
MOISÉS,
Massaud. A Literatura Brasileira através dos Textos. São Paulo:
Cultrix, 1971, 19?ed.; CAMPESTRINI, Hildebrando. Literatura Brasileira.
São Paulo: FTD; PINTO, Jos?Nêumanne. Resenha para o Caderno Cultura
do Estadão, por e-mail do dia 07 de novembro de 2005.
Raquel Naveira ?
escritora, professora e crítica literária.
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