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Crianças pela Hora da Morte

 

David J. F. do Vale Amado

 

“São São Paulo, pálido amor”, rezava, alucinado, o poeta forasteiro. Corta-me o coração ver crianças-tenros-versos largadas à própria sorte, nas ruas, nos descaminhos da vida, pândegas como seres adultos transviados. Dói-me a alma anestesiada, revolta-me a insensatez dos que passam compadecidos e impotentes como eu. Esse quadro poente repete-se todos os dias, dia e noite, em quase todas as avenidas, em quase todas as praças, sob os viadutos, sob as marquises dos prédios, em qualquer canto em que seja possível abandonar o corpo lasso. Crianças podres, como frutos podres, dormem ao relento, nas calçadas – bêbadas, drogadas –, sem sentido de ser, sem esperança, sós, menosprezadas por Deus e pelos homens de boa fé. Em que becos ágrafos, em que estepes de exclusões claudicam seus iguais, seus familiares que nunca tiveram, que nunca lhes valeram? Onde se escondem as mães sombrias que as pariram? Que as abortaram?... Em que lodaçal estão chafurdados os pais que foram vítimas-coniventes no “pecado capital de fornicação”, no ato de desamor e devassidão? Dormem, também, insones, dementes, em algum lugar que não existe e não lhes pertence, em algum leito de sofrimento, em qualquer paragem de esmolas, peregrinações e perseguições, com o destino roto e as esperanças esvaídas e levadas às últimas conseqüências.

Crianças de rua pela hora da morte – “batismo de sangue”: esse é o nome que conjugam com o mesmo desafeto de se saberem órfãs e desvalidas. Crianças adúlteras, adultos à força, doces santos convertidos a bandidos, “gentios” sem chance de salvação. Que lhes importa a salvação, se têm a obrigatoriedade da cruz de todos os dias sobre os frágeis ombros, se têm a maldição estampada no rosto, como uma bênção, se se ultrajam, indiferentes, banalizadas, como animais feridos que rondam o seu próprio abismo? Sequer sentem pena de si, de sua desgraça e humilhação. Fedem como carne pútrida, como a morte... são andarilhos malcheirosos que espalham o desespero por onde se arrastam. São meninos e meninas andrajosos que costuram os poucos espaços que lhes restam, disputados com o rancor da intolerância e da clandestinidade. Crianças que matraqueiam palavras inaudíveis, que resmungam dores que não queremos ouvir, que se abalroam com as recordações de miséria e total abandono, tecendo para si e seus comparsas do medo um fim medonho e desumano. Ninguém lhes estende a mão, não lhes dá abrigo, não as conforta; ninguém as quer nem por piedade. Não há cura para o que não quer ser curado; não há conserto para o que se desconcerta física e espiritualmente, para o que se autodestrói; não há como cerzir o que é inconsútil. Não valem nada essas heroínas de rua, hereges espancadas e estupradas – gentinha sórdida e virtuosa que desafia a vida, que conspira a sorte, que não se regenera e caminha para o cadafalso. Também não valem um vintém os seus detratores e todos aqueles que as aliciam para a catástrofe da guerra urbana e da prostituição infantil.

Seu Dotô, uma esmola para um homem que é são/bom... ou me mata de vergonha, ou vicia o cidadão!”. Um bebê famélico choraminga entre trapos e sacos de lixo espalhados pelo chão; outro agarra-se ao colo de uma irmã de aluguel; outros mais, como anjos sem direito ao paraíso, brincam com o destino como em uma tela da Madona e o Menino Jesus. Uma mãe entorpecida e desfeita em tragédia encena aos transeuntes: “Uma esmola, por favor!... Deus lhe dê em dobro, moço!”. Na próxima esquina, a cena se repete com mais angústia: “Um pão, apenas um pão, pelo amor de Deus?!”. Mas quem é Deus para socorrer mães e crianças famintas? Deus não tem fome, e não mora na rua... E não precisa de ajuda, dotô!

Sob o viaduto, os curumins da selva de pedra, ensandecidos, refestelam-se com as sobras azedas colhidas do lixo, migalhas extorquidas de cães esquálidos e sarnentos. Crianças desterradas no seio da sociedade – mendigos, viciados, vagabundos inveterados, malandros compulsivos, doentes mentais irrecuperáveis... Elas estão em toda parte, são versos merencórios, dejetos humanos que perambulam a esmo, reféns do medo, da sevícia, seres alienígenas sem o pudor da cidadania, sem credo, sem senso humanitário. Crianças almas penadas que perderam a dignidade, a honra, a vergonha, a vontade, o prazer da infância; crianças suicidas altruísticas que se orgulham da infelicidade, matam-se pela vida – e não sabem que morrer é bem melhor do que viver – ou, talvez, como último ato de protesto insano contra o desejo funesto da maioria das pessoas de bem que as quer subjugadas pela sua liberdade servil. Vívidas lembranças de discriminação e dor atormentam-lhes o juízo e as dilaceram em gestos loucos de socorro e desespero; são criaturas desfiguradas e aflitas, filhos da corrupção, fantasmas das religiões, espectros reais e concretos daqueles que somente têm olhos voltados para o próprio umbigo e não querem redimi-las de sua tétrica sina; crianças-frutos-enjeitados da sociedade moralista, a excrescência da hipocrisia e da irracionalidade econômica que grassa desvairadamente até nas mais recônditas comunidades deste país; são filhos das trevas, de autoritários deuses, de pais e mães desgraçados, de professores ignorantes e “polivalentes”, da “ética excludente” dos ricos, das desigualdades gritantes. São filhos dos coronéis do Norte, da indústria da seca, dos imperadores capitalistas do Sudeste e do Sul, dos latifúndios do campo e das cidades, dos impiedosos burgueses do comércio e da indústria; são rebentos amaldiçoados pelos representantes das “eclésias financeiras”; são os banidos das ditaduras ainda latentes, penitentes das políticas elitistas de concentração de renda e da indiferença dos cientistas econômicos; são apartheids do FMI, dos herdeiros privilegiados do capital e dos meios de produção – os donos do Brasil –, dos parlamentares arrivistas, das bancadas corporativistas, dos ladrões oficiais, das bandas podres da polícia. A quem interessa esse espetáculo de horror? Usque tandem Cláudius, Edirius, Josephus, Paulus, Saulus, Fernandus, “InocentiusLu-Lalaus et caterva?

A vida de rua desenha-se como um quadro surrealista escabroso... em vez de nos enlevar o espírito para a oração e a luta, leva-nos à blasfêmia, à insurreição xucra. Diante do bem impossível e do mal inominável eu sinto vontade de pecar todos os pecados do mundo. As instituições políticas, sociais e religiosas, desgraçadamente, estão obsoletas, falidas: os políticos... ah, eles insinuam-se cada vez mais possessivos e calhordas; os abnegados às causas sociais são misantropos incorrigíveis; os representantes de “Zeus” na terra são um bando de incompetentes e inúteis. As prostitutas, os travestis e toda sorte de devassos são mais autênticos e menos heréticos.

A bandidagem, minha gente!... – a contravenção, a ilegalidade, a roubalheira, a sonegação e a corrupção tomaram conta da sociedade brasileira – e seus atos infames praticados à larga são institucionalizados pelo costume do “é dando que se recebe” e pela cultura do “rouba, mas faz”. São espertos e “espelhos” todos aqueles que se valem da lei, da autoridade, da impunidade e da imunidade parlamentar para o exercício do domínio e do enriquecimento ilícito.

São Paulo fede a fezes, a urina, ao descaso, herança maldita de  bandeirantistas hodiernos inescrupulosos, de capitalistas imperialistas, de elites perversas que dominam os meios de comunicação, o poder judiciário e a burocracia constitucionalizada; de governantes bolas-da-vez, carreiristas, que perpetuam os mesmos desmazelos e os mesmos erros do passado. São Paulo e o Brasil carecem de inteligências políticas mais aguçadas, de homens sérios e eticamente comprometidos com as maiorias minoritárias. Ainda vamos de roldão, sob a égide litúrgica do colonialismo, do escravagismo, do oligarquismo, jargão que ecoa como (um) inexpugnável “venha a nós o vosso reino e que se danem os outros”. O Brasil também fede a fezes, minha gente! Malditos espertalhões que nos governam e procrastinam sua rendição – antes querem ver a nação espoliada! E eles não se fazem de rogados... são mais brasileiros do que aqueles que penam as desigualdades, a miséria, as exclusões. As injustiças sociais são um “decreto de morte” a mais de cinqüenta milhões de brasileiros, ou não brasileiros, porque um homem sem terra, sem teto, sem trabalho, sem o seu quinhão de direito não é um cidadão, não é um brasileiro, é um ser perdido em território inimigo, um exilado em sua própria pátria. Por favor, deixem-me blasfemar!

Davi J. F. do Vale Amado é escritor, professor e crítico literário.