|
|
|
Dúvidas Borgeanas Rodolfo Konder Venho de um tempo distante, de memória diluída, em que já se
misturam a realidade e a fantasia. A praia de Ipanema, na minha infância, era
de areia branca, às vezes invadida por tatuís, e o mar vivia povoado de golfinhos, arraias,
sardinhas e tubarões. No bairro, não havia prédios, somente casas, algumas
ruas de terra, armazéns sempre administrados por portugueses robustos,
quitandas e barbearias, três cinemas e diversos botequins. O Rio de Janeiro
terminava no Bar 20, no fim de Ipanema, onde o bonde fazia a curva. E o único
mendigo que conhecíamos se chamava “Poeta” e gostava de improvisar versos de
pé quebrado para mulheres bonitas. Na minha
adolescência, andávamos sem temor pelas madrugadas de Copacabana, jogávamos
sinuca no “Bar do Zé”, no Posto Seis, dançávamos com as meninas do Bolero e
comíamos picadinho no Alcazar. A maior violência que me atingiu, naqueles
anos ensolarados, foi a surra que levei num jogo de futebol, na praia do
Lido, entre o nosso time, o Internacional, e o time adversário, o
Lá-Vai-Bola. Apanhei muito, mas fui salvo pelo Luis Fernando Pinto da Veiga,
o meu amigo “Jaburu”, e já podia jogar de novo, na semana seguinte. Aos 17
anos, éramos todos imortais. Na Ipanema que veio
depois, moravam Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Aníbal Machado, Vinícius de
Moraes, Tom Jobim, Ivan Junqueira, Paulo Saboya, Maria Clara Machado, Carlos
Heitor Cony, Willy Lewin, Renato Cláudio Alves Ribeiro, poetas, cronistas,
romancistas, críticos, jornalistas e bêbados famosos, que se reuniam no
Jangadeiros, no Lagoa ou no Veloso, de onde víamos passar, todas as manhãs, a
Heloisa Pinheiro e outras meninas lindas, “em seu doce balanço a caminho do
mar”. Todos então se encharcavam de álcool, enquanto eu tomava uma “vaca
preta”. O Rio de Janeiro
daquele tempo era a capital do País, o principal foco de irradiação cultural,
porto de mar, porta de entrada e saída, cenário de grandes batalhas
políticas. Vivemos intensamente o suicídio de Getúlio Vargas, o otimismo de
Juscelino, os debates memoráveis entre Carlos Lacerda e Eloy Dutra (“o tigre
da Guanabara”), as fracassadas campanhas de Sérgio Magalhães e do Marechal
Lott, a renúncia de Jânio, a cadeia da legalidade, a posse de Jango e o golpe
militar de 64. Empurrado pelo AI-5 (o ato institucional que marcou um golpe
dentro do golpe – e o começo de um processo insuportável de radicalização)
vim para São Paulo, em dezembro de 1968, deixando para trás uma cidade em
declínio, que logo se transformaria num “grande balneário decadente”, segundo
a cáustica definição de Alberto Dines. Sobrevivemos à
guerra fria, à ditadura militar, ao general Sylvio Frota, ao general Ednardo
Dávila Melo, aos torturadores do DOI-Codi, à morte do socialismo, a dezenas
de crises econômicas, ao cruzeiro, ao cruzado, ao governo Collor e ao PC
Farias. Talvez sejamos na
verdade imunes às crises, à loucura, à corrupção e à breguice. O problema é
que, lá atrás, naqueles tempos hoje cobertos pela névoa, parecíamos mais
capazes de aprender com os fatos. Agora, ao que tudo indica, estamos andando
em círculos. Precisamos encontrar
a porta para o século 21, redescobrir o Mercosul, reconquistar a sensatez, a
ética e a estética esquecidas no acostamento da estrada que nos trouxe até
aqui. Sei que vivemos um momento de transição, que a globalização cobra
organismos e soluções supranacionais para problemas e crises que eliminam
velhas fronteiras e conceitos superados. Sei também que o processo de
mudanças é vivo e dinâmico como um rio – que nos levará a algum lugar. Só não
tenho mais a certeza dialética de que haverá uma mudança de qualidade, para
melhor, lá no fim desta fase de transição. Deixei de acreditar em Papai Noel,
em Fidel Castro e na bondade intrínseca da natureza humana. Rodolfo Konder é
jornalista, escritor e conselheiro da União Brasileira de Escritores. |
|