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O Acampamento: uma visão

José Carlos da Silva

 
Aricy Curvello

 

Misturam-se em minha memória variadas imagens de florestas.

Tudo começou em meio a um bosque natural, o único “reino verde” que ilusoriamente dominei com meu corpo e mente de menino e onde me encontrei selvagem. Indescritível sabor de pertencimento ao meio, como se fora parte viva e essencial daquela fulgurante vegetação. Eram apenas algumas árvores completadas por arbustos, gramíneas e um córrego. Mas, para a turminha moleca, reproduzia à perfeição a selva africana, a única que nos davam a conhecer, por vias do cinema que, em alguns sábados, acontecia no desconhecido distrito paulista de Batatuba.

O  Acampamento, de Aricy Curvello, começa com uma escalada ao infinito da floresta dominante, ao que parece, com as pernas quase estáticas e os olhos abarcadores. Foi esse mesmo sentimento que o modesto bosque impregnou em  mim na infância, décadas atrás. Fizera nele a antileitura do que viria a ser escrito muito mais tarde por Aricy.

O tempo passou e as circunstâncias me levaram um dia a Manaus. Pude me envolver, daquela feita, na selva brasileira mesma. Não a que viu, sentiu e cantou Aricy em Porto Trombetas, no Pará, mas a que é mostrada perifericamente a turistas acomodados. Mesmo assim pude rever a inebriante experiência da infância, em escala extraordinariamente maior. Fiz, por assim dizer, a segunda antileitura de O Acampamento. 

Mas não bastava! Era preciso o encontro culminante, a fusão paracarnal entre o meu ser incapaz e a floresta imensurável. Eu não sabia. Mas o destino me preparara, nas duas experiências anteriores, para esse encontro. Curioso para mim é constatar que o mesmo viria a ocorrer de forma indireta, por meio da poesia. Quem sabe para me resguardar da rudeza hostil da selva que o poeta teve de enfrentar. O Acampamento cumpriu com perfeição esse papel. Ao Lê-lo, consenti a concussão virtual da minha pessoa com a dimensão gigantesca da floresta amazônica anunciada por Aricy Curvello.

A falta de um “sinal para fixar-te” é a primeira grande expressão de O Acampamento. Não ter um chão, um céu, uma referência qualquer para destacar o homem-átomo na vastidão do cenário verde é angustiante. É a reafirmação de um quadro constitutivo do permanente drama humano: o de não saber o que faz, e onde, e porquê, e para quê, no mundo onde foi posto a viver. Mas há ao menos “barracões contra o rio”. Com tão pouco, Aricy instala na mente do leitor perplexo a Amazônia, onde “mugem... palavras sem poema/ absurda coleção de pragas”. Melhor antítese poética, difícil!

E a floresta segue se desdobrando com dimensão crescente, a esmagar cada vez mais a pequenez humana (ressalvada a grandeza dos sentidos e da alma de quem a sentia para depois recriá-la  para nós) até que algo novo e previsível começa a se revelar: “No princípio do mundo, a madeira atroz... um embarcadouro de nada...”, traços em ruína daqueles que por ali estiveram em busca das riquezas naturais.

A descrição se torna quase minuciosa, ao dizer da faina humana e das coisas locais, mas só por algum instante. A voz do poeta retorna, então, ainda mais forte, para dizer em tom de despedida definitiva: “O que vejo: não mais verei...” e segue reproduzindo (para nós) os rios, as árvores, os bichos... e  - de repente – o trágico, revelado na sanha humana de devastar à boca voraz tudo o que tenha reluzido à riqueza material bruta.

O Acampamento muda o tom. Passa do lirismo com que expunha o complexo ecológico para a denúncia: “Os homens não buscam a luz do rio”. Doce  metáfora para dizer do  mau comportamento humano em qualquer lugar do planeta. E o poeta nem mesmo se exclui, ao encerrar a parte 5: “... meu salário”.

O tom do poema se agrava, acenando à desilusão. Era verde”. O duplo sentido desse desconsolado brado parece preanunciar uma desertificação em curso com que o futuro nos amaldiçoará.

As idéias e alusões vão se comprimindo em sínteses de reiterada ênfase, até se completarem do jeito que tudo começou, “em volta das casas”, como se a avalanche temática do poema houvesse completado um círculo perfeito de pensamentos vazados pela retina de Aricy Curvello, em alguns segundos ou em anos de reflexão.

José Carlos da Silva, engenheiro ambientalista, professor da Universidade Federal de Uberlândia (MG), poeta e contista.