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Rodolfo konder

 

Havia o mar, uma imensa e insondável nação submersa, povoada de peixes, mitos e lendas. Enormes arraias flutuavam na ondas, junto às pedras do Arpoador. Golfinhos gentis e tubarões solitários apareciam de vez em quando, entre cardumes de sardinhas e caravelas. As manhãs eram azuis e as águas, transparentes, para o desespero dos peixes e a alegria dos predadores. Uma tainha se distraía, nadava junto à superfície, brilhava ao sol – e desaparecia no bico de uma ave. “A gaivota determinada mergulha na água verde”, escreveu Paulo Mendes Campos. “Há um tempo para o peixe e um tempo para o pássaro. E dentro e fora do Homem, um tempo eterno de solidão.”

Havia a praia, que se estendia do Arpoador até a subida da Avenida Niemayer, aos pés do Morro dos Dois Irmãos. A areia branca e fina escondia conchas, tatuís e vestígios de barcos naufragados que nos desafiavam com os mistérios das profundezas e do destino. À tarde, sentávamos nas dunas mais altas e olhávamos a maré, as nuvens e as ilhas do Arquipélago das Cagarras, que nos vigiavam do alto mar, manchadas e imperturbáveis. O sol descia então lentamente, diante do nosso deslumbrado silêncio. O céu parecia um quadro tachista. A noite chegava à praia no ruído discreto das marolas, trazendo para a areia os tristes vestígios cansados do dia.

Havia o bairro, que na verdade começava no Arpoador, crescia, internamente, a partir da Praça General Osório, avançava pela Visconde de Pirajá, chegava até a Lagoa Rodrigo de Freitas e terminava no Bar Vinte, logo depois do Cine Astória, onde o bonde e o vento faziam a curva. Algumas ruas ainda eram de terra. A Nascimento Silva era asfaltada, mas só a partir da Farme de Amoedo. Morei ali, na casa de número 87. Na esquina de Barão da Torre e Farme de Amoedo, “seu” Afrânio tinha um açougue. Do outro lado da rua, ficava a padaria do “seu” Manoel, pai do Paulo “Gordo”. Um quarteirão adiante, na Monte Negro, um botequim onde comíamos queijo e goiabada – “Romeu e Julieta”. Logo em seguida, a escola de capoeira do Sinhozinho e a Praça da Paz, em frente à igreja.

Havia a gente do bairro. Primeiro, os meninos sem sobrenome que moravam em cortiços e brigavam de gilete na mão. Joaquim, o Quim, tinha um quisto supurado na bochecha esquerda, por onde expelia a fumaça do cigarro, se lhe dessem 500 réis. Depois, chegaram os amigos de classe média – Renato Cláudio Alves Ribeiro, Paulo Saboya, Carlos Roberto Estrella, Heitor Simões de Oliveira. Passávamos os fins de semana na praia e jogávamos sinuca no Bar do Zé, no Posto 6, em Copacabana. Vieram também as meninas, as namoradas, as primeiras paixões – Aida, Lucy, Wilma. Bebíamos todos no Veloso, no Lagoa e no Jangadeiros. Freqüentávamos os cinemas Ipanema, Pirajá e Astória.

Renato Cláudio era o mais corajoso do grupo. Na noite em que o Saboya mexeu com a mulher de um halterofilista, ele foi o único a enfrentar os amigos do ofendido, que voltaram em sua companhia até o Bar Gardênia, onde Renato e Saboya bebiam cerveja com Satamini e João de Deus. Saboya fugiu de taxi, Satamini se escondeu na cozinha do restaurante e João de Deus correu para o Cine Ipanema, em frente à Praça General Osório. Renato, ao contrário, avançou sobre os inimigos – e apanhou a noite inteira.

Estrella era ousado. Certa manhã, nadou quilômetros, com Carlos Magalhães, numa prancha, até as Ilhas Cagarras. Na volta à Praia de Ipanema, tiveram de se orientar pelas luzes, porque a noite caiu sobre eles ainda em pleno mar. Quase morreram. Meses depois, Magalhães tentou repetir a façanha, com o irmão do Saboya, João Carlos. Ambos desapareceram no mar.

Hoje com cento e dez anos, Ipanema possui memórias miúdas e fantasmas ilustres, como Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Vinícius de Morais, Tom Jobim. Leandro Konder mudou-se para o Leblon. Milton Temer também já não mora mais ali. Mas a arborizada Ipanema ainda desafia o tempo, deslumbrantemente nua e discretamente orgulhosa, como era nos anos 40, quando a descobrimos e nos apaixonamos por ela.

 

Rodolfo konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.