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O Copo Azul

 

Conto de Caio Porfírio Carneiro

 

Já eram as ânsias da morte. Eram, sim. Observava-a detidamente ali se contraindo em dores na cama, rolando para um lado e outro, olhos esbugalhados, a boca a abrir-se desmesuradamente, como sufocada, buscando ar. E vinham as caretas de dor. As mãos não paravam. Comprimia os seios, rasgava o vestido róseo. Encolhia e estirava as pernas, a saliva escorria do canto do lábio, trêmula, e o som rouco e o gesto dos dedos da mão pareciam pedir-lhe socorro. E ele olhava fixo para o copo azulado, ali na mesinha.

Perdeu a coragem de continuar a vê-la nessa agonia. Pensava que fosse mais rápido e tranqüilo. Foi recuando, recuando. Saiu do quarto, ganhou a rua, um tanto desnorteado. Tudo deserto àquela hora. Caminhou rápido até a esquina, dobrou-a. Viu-a à janela. Fez-lhe sinal. Ela fechou a janela e apareceu à porta, nova, esbelta, risonha. Fez-lhe novo sinal e ela o acompanhou. Entraram na folhagem espessa do jardim, ali próximo. Beijaram-se alucinadamente. Ela o olhou curiosa:

- E então?

- Creio que a dose foi muito forte. Não sei quanto bebeu. O copo é escuro. Ela ficou lá em convulsões.

- Depois dessas convulsões, adeus. Vamos brincar um pouco aqui. Deixar passar umas duas horas.

Ela, tão jovem, tão bela, ajeitando ainda o vestido, arrastou-o depois de volta pela rua deserta e ensolarada. Ele resistiu para entrar em casa. Ela, decidida, olhou para um lado, para outro. Ninguém. Ele deixou escapar uma ponta de arrependimento:

- É minha mulher... sua tia...

Ela o puxou pelo braço:

- Era sua mulher, era minha tia. Vamos.

Entraram pisando em ovos, ouvindo os próprios passos. Foram diretos ao quarto. O susto dele foi de surpresa. O dela de perplexidade. A cama mostrava-se bem arrumada, fronhas e lençóis novos. A mesinha sem o copo azulado.

Caminharam para a sala de jantar.  Os olhos dela irrequietos. O coração dele quase parado. E petrificados ficaram quando viram a mesa posta, xícaras à frente das cadeiras de encostos altos, os bules de louça fina. Biscoitos. Tudo bem posto sobre a toalha de pequenas estrias amareladas.

Ela, à cabeceira, bem vestida e cabelos prateados bem penteados, pronta para comandar a recepção. Encarou-os com ternura, gesto convidativo:

- Sente-se, meu marido. Sente-se, minha sobrinha.

Obedeceram como autômatos. E como num sonho viram que pessoas austeras, olhos neles, saíam de outro quarto e silenciosamente sentavam-se à mesa.

Ela, à cabeceira, meio sorriso de ironia, abriu uma caixa de papelão ali ao seu lado e dela tirou, para todos verem, o vestido róseo rasgado. Exibiu-o para a sobrinha:

- Olhe, querida, há vários rasgões nele. Você elogiou sempre este meu vestido róseo, inclusive o meu marido. Está praticamente imprestável, não acha? Uma prova a mais de que fui sempre uma boa artista dramática. Muito lhe ensinei de dramaturgia. Mas você, minha sobrinha, nunca passou de uma insignificante figurante.

Jogou o vestido e ele foi cair no colo da sobrinha, que não fez um gesto.

Ela, altaneira à cabeceira da mesa, abriu um gesto largo:

- Vamos à ceia. Sirva-se, minha sobrinha. Sirva-se, meu marido. Você sempre gostou do chá desta hora. Sirvam-se todos.

Apontou para os bules. Erguendo-se, em gesto teatral, levantou o guardanapo que cobria uma louça, no centro da mesa. Como entrando em cena, apareceu o copo azulado que o marido lhe dera, com um néctar dos deuses, como ele lhe dissera. E ela insistia:

- Sirva-se, meu marido. Sirva-se, minha sobrinha. Sirvam-se todos.

O marido flutuava. A sobrinha, gélida, flutuava.

E ela, sempre altaneira, à cabeceira, avisou:

- Depois estes senhores vão querer ouvir a história do conteúdo desse belo copo, que ganhei de presente. Obrigada, querido, pelo presente. Obrigada, minha sobrinha. Quem sabe você sugeriu a cor. Você sempre foi boa para isto, me deu bons palpites nas minhas compras, lembra-se Mas creio que não é lá grande coisa em néctar divino.

Sorveu um gole de chá, trincou uma ponta de biscoito, pegou um pedacinho dele, mirou o alvo, jogou-o em direção ao copo azul. Olhou para o marido, para a sobrinha, para as visitas, riu feliz:

-       Acertei.

 

Caio Porfírio Carneiro é escritor, crítico literário e secretário administrativo da UBE.