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Um Tempo de Sombras

 

Rodolfo konder

 

Éramos mais de 60 pessoas engaioladas num apartamento de quatro quartos e duas salas, no Morro da Viúva. Buscávamos ali a proteção do governo mexicano, porque, lá fora, os responsáveis pelo regime militar implantado após a derrubada do Presidente João Goulart nos caçavam e nos cassavam. Mas não nos amávamos uns aos outros, nós, os asilados. Ao contrário, divididos em grupos, dedicávamos nosso tempo a odiar os demais, que considerávamos “dissidentes”.

O grupo dos marinheiros – uns oito ou nove, liderados pelo cabo Anselmo e pelo padre Alípio de Freitas – insistiam em utilizar a embaixada como uma espécie de base para suas conspirações. Davam telefonemas, às escondidas. Faziam planos. Jogavam bilhetes pelas janelas. A maioria dos asilados, no entanto, considerava aquilo uma estupidez, que só podia resultar em riscos para todos. As divergências cresciam. O ódio também.

Certa manhã, os marinheiros chegaram ao cúmulo de defecar deliberadamente no chão dos banheiros, num gesto de clara hostilidade ao grupo dos “moderados”, incumbido da limpeza, naquele dia. O comandante Thales Fleury de Godoy; os bancários Luiz Villegas, Humberto Menezes e Osmildo Stafford; os petroleiros Josias Muniz e Luís Pelegrini; Heron de Alencar e Felix Athayde já se preparavam para a confrontação física. Então, convocamos uma assembléia.

Durante os debates acalorados, ponderei que precisávamos respeitar as regras do jogo – e não tinha sentido trair a confiança da embaixada que nos abrigava. “Quem ainda se sente em condições de fazer alguma coisa”, conclui, “deve sair daqui e atuar lá fora”. Após a reunião, o padre Alípio rugiu, ao cruzar comigo no corredor. “Vamos precisar de muita corda para enforcar tantos traidores.”

No dia seguinte, o grupo dos marinheiros organizou um encontro fechado. Soubemos depois que haviam decidido mandar alguém para fora da embaixada, numa difícil missão: afundar o porta-aviões Minas Gerais. Designaram um marinheiro, que recusou a tarefa e foi execrado pelos demais. Então, o cabo Anselmo se ofereceu como voluntário. Saiu de madrugada – e foi preso, quase imediatamente.

As fotos de sua prisão só contribuíram para aumentar nossas suspeitas em relação a ele. Parecia sempre tranqüilo e sorridente. Dentro da embaixada, também se comportava de maneira estranha. Freqüentemente, dançava sozinho, requebrando, de olhos fechados. Em nada lembrava um dirigente revolucionário, no caso, o líder da rebelião dos marinheiros, de 25 de março aquele José Anselmo dos Santos sempre mergulhado num narcisismo insuportável, com suas avaliações superficiais e um comportamento surpreendentemente efeminado. Dois anos depois, fugiu da prisão. Uma fuga facilitada, para que percorresse um longo caminho de sangue e traição, quando levava à morte todas as pessoas que nele acreditavam ou com ele compartilhavam alguma atividade clandestina.

Ao fim de anos de silêncio, já devidamente desmascarado (inclusive pelo livro Cabo Anselmo, a Luta Armada Ferida por Dentro, de Marco Aurélio Borba), o agente José Anselmo se encontrou com o jornalista Octávio Ribeiro, a quem concedeu entrevista gravada, com sete horas de duração. Contou então como havia procurado o delegado Sérgio Paranhos Fleury, para trabalhar como analista político dos órgãos de repressão, sem abandonar suas atividades na direção da VPR, / a Vanguarda Popular Revolucionária.

Por que reapareceu na véspera das diretas? Por que o controvertido personagem, tido primeiro como “perigoso agitador”, capaz de subverter a hierarquia militar, para depois aderir ao braço armado da repressão, resolveu falar? Para esclarecer ou para confundir ainda mais? Ele ressurgiu das cinzas, deu a entrevista – e sumiu novamente. Veio das sombras, de um tempo de sombras, e às sombras retornou. Alguém sente saudades daquele tempo?

As ditaduras são sempre sombrias. Conseguem silêncio porque amordaçam as bocas. Imobilizam as pessoas pelo medo. Alimentando-se do ódio e da delação. Apóiam-se nas fraquezas, estimulando a vingança, o revide, a retaliação. Produzem os agentes da sombra, os informantes, os delatores. Valorizam a dissimulação e a perfídia. Não podemos – nem devemos – esquecer. Ditadura, nunca mais.

Rodolfo konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da UBE.