Éramos mais de 60 pessoas engaioladas num apartamento de quatro quartos e duas salas, no Morro da Viúva. Buscávamos ali a proteção do governo mexicano, porque, lá fora, os responsáveis pelo regime militar implantado após a derrubada do Presidente João Goulart nos caçavam e nos cassavam. Mas não nos amávamos uns aos outros, nós, os asilados. Ao contrário, divididos em grupos, dedicávamos nosso tempo a odiar os demais, que considerávamos “dissidentes”.
O grupo dos marinheiros – uns oito ou nove,
liderados pelo cabo Anselmo e pelo padre Alípio de Freitas – insistiam em
utilizar a embaixada como uma espécie de base para suas conspirações. Davam
telefonemas, às escondidas. Faziam planos. Jogavam bilhetes pelas janelas. A
maioria dos asilados, no entanto, considerava aquilo uma estupidez, que só
podia resultar em riscos para todos. As divergências cresciam. O ódio também.
Certa manhã, os marinheiros chegaram ao cúmulo de
defecar deliberadamente no chão dos banheiros, num gesto de clara hostilidade
ao grupo dos “moderados”, incumbido da limpeza, naquele dia. O comandante
Thales Fleury de Godoy; os bancários Luiz Villegas, Humberto Menezes e Osmildo
Stafford; os petroleiros Josias Muniz e Luís Pelegrini; Heron de Alencar e
Felix Athayde já se preparavam para a confrontação física. Então, convocamos
uma assembléia.
Durante os debates acalorados, ponderei que precisávamos
respeitar as regras do jogo – e não tinha sentido trair a confiança da
embaixada que nos abrigava. “Quem ainda se sente em condições de fazer alguma
coisa”, conclui, “deve sair daqui e atuar lá fora”. Após a reunião, o padre
Alípio rugiu, ao cruzar comigo no corredor. “Vamos precisar de muita corda para
enforcar tantos traidores.”
No dia seguinte, o grupo dos marinheiros
organizou um encontro fechado. Soubemos depois que haviam decidido mandar
alguém para fora da embaixada, numa difícil missão: afundar o porta-aviões
Minas Gerais. Designaram um marinheiro, que recusou a tarefa e foi execrado
pelos demais. Então, o cabo Anselmo se ofereceu como voluntário. Saiu de
madrugada – e foi preso, quase imediatamente.
As fotos de sua prisão só contribuíram para
aumentar nossas suspeitas em relação a ele. Parecia sempre tranqüilo e
sorridente. Dentro da embaixada, também se comportava de maneira estranha.
Freqüentemente, dançava sozinho, requebrando, de olhos fechados. Em nada
lembrava um dirigente revolucionário, no caso, o líder da rebelião dos
marinheiros, de 25 de março aquele José Anselmo dos Santos sempre mergulhado
num narcisismo insuportável, com suas avaliações superficiais e um
comportamento surpreendentemente efeminado. Dois anos depois, fugiu da prisão.
Uma fuga facilitada, para que percorresse um longo caminho de sangue e traição,
quando levava à morte todas as pessoas que nele acreditavam ou com ele
compartilhavam alguma atividade clandestina.
Ao fim de anos de silêncio, já devidamente
desmascarado (inclusive pelo livro Cabo Anselmo, a Luta Armada Ferida por
Dentro, de Marco Aurélio Borba), o agente José Anselmo se encontrou com o
jornalista Octávio Ribeiro, a quem concedeu entrevista gravada, com sete horas
de duração. Contou então como havia procurado o delegado Sérgio Paranhos
Fleury, para trabalhar como analista político dos órgãos de repressão, sem
abandonar suas atividades na direção da VPR, / a Vanguarda Popular
Revolucionária.
Por que reapareceu na véspera das diretas? Por
que o controvertido personagem, tido primeiro como “perigoso agitador”, capaz
de subverter a hierarquia militar, para depois aderir ao braço armado da
repressão, resolveu falar? Para esclarecer ou para confundir ainda mais? Ele
ressurgiu das cinzas, deu a entrevista – e sumiu novamente. Veio das sombras,
de um tempo de sombras, e às sombras retornou. Alguém sente saudades daquele
tempo?
As ditaduras são sempre sombrias. Conseguem
silêncio porque amordaçam as bocas. Imobilizam as pessoas pelo medo.
Alimentando-se do ódio e da delação. Apóiam-se nas fraquezas, estimulando a
vingança, o revide, a retaliação. Produzem os agentes da sombra, os
informantes, os delatores. Valorizam a dissimulação e a perfídia. Não podemos –
nem devemos – esquecer. Ditadura, nunca mais.
Rodolfo konder é escritor, jornalista, Diretor
Cultural da UniFMU e conselheiro da UBE.