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A Fuga

 

Rodolfo Konder

 

A fuga é uma voragem, um mergulho angustiado em águas turvas. Deixei para trás a família, os amigos, o apartamento, o carro, as roupas, os livros, os quadros, os móveis. As referências essenciais ficaram aqui, em São Paulo, e no Rio de Janeiro, enquanto eu seguia para um segundo exílio. Demitido da TV Bandeirantes, da Fundação Armando Álvares Penteado e da Revista Visão (neste último caso, a meu pedido), ameaçado pelo “Braço Armado da Repressão”, fugi para a Argentina.

Os feriados do carnaval de 1976 levaram muita gente a Foz do Iguaçu. Hotéis lotados, restaurantes cheios, ruas apinhadas de criaturas vorazes que invadiam as lojas e tudo consumiam. Consegui um quarto sem ar condicionado, numa espelunca qualquer. Na portaria, perguntei o que precisava fazer para visitar Puerto Iguaçu. “Me dá sua carteira de identidade, que eu peço uma autorização oficial à polícia. Amanhã, às 10 da manhã, um carro da empresa de excursões vem apanhar os interessados.”

Entreguei a carteira, bebi uma Coca-cola – e passei a noite em claro, imaginando que a Polícia Federal logo bateria à porta do quarto, para me prender. Todos os ruídos pareciam suspeitos. O tempo  gotejava como suor. Certamente me arrancariam dali a tapas e me transportariam de volta ao CODI-DOI, em São Paulo, para um insuportável reencontro com os torturadores de plantão. Talvez nem chegasse até lá, deixando-me pelo caminho, em alguma ravina perdida na paisagem deserta ou às margens de um rio barrento e esquecido.

Às 9 da manhã, desci até a portaria, trêmulo e enjoado. Devolveram minha carteira e logo embarquei numa caminhonete da Salvatti Turismo, com mais sete pessoas, até a fronteira marcada pelo Rio Iguaçu. Milhares de turistas brasileiros fluíam, como uma irresistível maré humana, para o posto alfandegário, à margem do rio. A multidão cantava, dançava e se arrastava, caindo sobre as barcaças que faziam a travessia para a margem argentina. Os guardas haviam desistido de recolher as autorizações. Nem pediam qualquer documento. Quem chegasse até ali, passava. Num dos barcos, entre homens bêbados e mulheres semidespidas, fui virtualmente carregado para fora do Brasil.

Do outro lado do rio, olhei pela última vez para o território brasileiro, com uma enorme sensação de alívio. “Escapei”. Andei pela terra batida, subi um barranco e vi uma fileira de automóveis e ônibus, parados num amplo estacionamento. Corri até um taxi. “Quanto você quer para me levar a Posadas?” “Seiscentos cruzeiros.” “Por 500, partimos agora mesmo.”

A viagem durou quase quatro horas, porque uma violenta tempestade de granizo obrigou o motorista a encostar o carro por algum tempo. Em Posadas, fomos direto para o aeroporto, um minúsculo aeroporto típico de cidade pequena. Comprei uma passagem para Buenos Aires, esperei umas três horas – e parti, ansioso por me afastar da fronteira.

Buenos Aires, a doce e suave Buenos Aires me recebeu com o carinho civilizado de sempre. Visitei uma loja, comprei roupas, enfiei-as numa mala e procurei um hotel decente. Até aquele momento, estava apenas com a roupa do corpo – e 5 mil dólares no bolso.

No dia seguinte, tomei um maravilhoso desayuno e saí para as ruas elegantes e ensolaradas do centro da cidade – Florida, Lavalle, Esmeralda, Suipacha, Maipu. Fui visitar um amigo, o jornalista Isidoro Gilbert. Ele me recebeu com muita alegria, mas com um ar de incredulidade: “Acabei de ler no La Nación a notícia do seu desaparecimento, no Brasil.”

Rodolfo konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.