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Sobriedade e Estilo de um Estreante

 

Ronaldo Cagiano

 

A estréia em ficção do poeta Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira se dá em grande estilo. Nascido em Cataguases, cidade de ricas tradições estéticas e berço de movimentos vanguardistas na literatura,  cinema, arquitetura e artes plásticas, o autor é professor e Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Espírito Santo e oferece-nos em sua obra  Uma e outra forma de tirania, uma prosa meticulosamente construída, que reflete não apenas seu amplo domínio da técnica narrativa, mas uma nervura e solidez própria dos veteranos. 

Os onze contos do livro, enfeixados por sóbrio projeto gráfico, retratam situações comezinhas que se passam em ambientes domésticos e que constituem o dia-a-dia de uma cidade do interior. No caso, o pequeno distrito de Vista Alegre, uma espécie de alter ego da cidade natal do autor,  foco e eco dos pequenos acontecimentos, dramas recorrentes na vida de personagens simples, mas capturados por um olhar atento, terno e poético de um verdadeiro estilista.

Neste pequeno burgo em que - na visão de um dos protagonistas -, “o relógio da igreja marca sempre a mesma hora”,  eclodem  histórias em que a traição, a espera, a nostalgia do passado, as decepções, o desencontro familiar, o silêncio das relações, a vida e a morte se entrelaçam ou se sucedem num movimento contínuo, indicando as diversas formas de tirania que regulam a trajetória existencial e relega tudo à inexorabilidade do esquecimento ou revela um baú de espantos.

É raro encontrarmos num autor estreante essa capacidade de reproduzir o universo de suas experiências pessoais com sobriedade e sem os vícios das inclinações sentimentais ou excessos nostálgicos impregnados de autobiografia. Marcos Vinícius visita o passado, a sua memória ancestral, o coração vulcânico das lembranças afetivas e constrói personagens e situações encontradiças em qualquer lugar, sem repetir a pieguice, criar inverossimilhanças ou requentar o velho estilo dos que buscam um encontro de contas com sua geração, com seu mundo ou com seu passado.

Nesses contos, o autor explicita, com elegância, refinamento e um lirismo sutil, um mundo comum e sem novidades, mas permeado de conflitos, perdas, solidão e silêncios. O desafio de evitar as caricaturas e excessos que as histórias do dia-a-dia comportam facilmente, foi vencido com o talento e a sofisticação de uma linguagem diáfana, entremeada de alusões aos  mestres  e analogias a lendas da cultura universal. Delicadamente, prestigiou a linguagem em vez da forma, provando que em literatura é possível falar do trivial sem cair na simplificação ou redundância e que o único meio de encontrar a eficácia da comunicação é a própria mensagem. 

Desfiando o fio da meada de labirintos emocionais, recolhendo os cacos de espelhos partidos, tentando entender a fragilidade das relações, auscultando  diálogos hibernados pela falta de comunicação ou enterrando seus mortos, a sua escrita vai costurando uma espécie de balanço bandeiriano da “vida que poderia ter sido e não foi”. Nisso o autor se contrapõe à visão nihilista ou cética da vida, para esboçar no tempo vivido pelos seus personagens toda sua carga metafórica e imagética que traduz a dimensão humana.  E para a competente manufatura de cada trama concorreu a destreza de artesão até mesmo na escolha de epígrafes, que funcionam como um sensível diálogo temático com outros colegas de ofício,  conferindo um novo significado à banalidade de histórias provinciais e quotidianas.

Marcos Vinícius é um autor de modelagem clássica, machadiano, tradicional, naquilo que a tradição tem de riqueza, estilo e exemplo; e no que se refere à exigência de responsabilidade no ato criativo, como nos informa, por exemplo, a literatura de um Graciliano Ramos.

Inicia com grande segurança sua trajetória literária pelos braços da ficção, algo raro num momento em que muitos autores desviam-se pelas vertentes sedutoras dos modismos e das impactâncias formais. Preferiu o caminho inverso, que prima pelo tratamento da linguagem e o bem contar uma história, seja ela corriqueira, insignificante ou inusitada. E o faz com inventividade, desenvoltura e ritmo,  iluminando com a sua experiência de leitor e com o seu faro aguçado de professor,  os detalhes  e as reentrâncias psicológicas de suas criaturas, flertando com a poesia, a filosofia, a história e as artes em geral, enfim, uma literatura que transcende o mero espectro narrativo para instaurar sua interface com outras linguagens e expressões.

Sem dúvida, estamos diante de um autor que merece um lugar em nossa bibliografia e esta singular e amadurecida estréia veio demonstrar que “Uma e outra forma de tirania” é apenas o iceberg de futuras e agradáveis surpresas, seguramente abrindo caminho para uma carreira ascendente,  que se consolidará sem muito esforço ou favor.

Uma e outra forma de tirania
Marcos Vinicius Ferreira de Oliveira
Coleção Rocinante

Ed. 7etras, Rio, 2006, 112 págs. R$25

Ronaldo Cagiano é escritor e crítico literário.