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A Inquisição

 

Rodolfo Konder

 

Os vultos atravessam os corredores sombrios levados pelo braço. Parecem personagens de uma tragédia medieval: trazem as cabeças cobertas por capuzes negros. Nas salas contíguas, há gente igualmente encapuzada, que está sendo punida por heresias imperdoáveis. Seus gritos podem ser ouvidos, nos corredores e nas celas – mesmo quando os algozes ligam o rádio e aumentam ao máximo seu volume. O desfile lúgubre, o torvo olhar do carcereiro, as paredes sujas que desaparecem na penumbra – tudo ali relembra o ambiente indecifrável da Inquisição. Apenas o cenário, porém, é medieval: os hereges nasceram todos no século 20; os torturadores também: e os instrumentos de tortura pertencem, sem dúvida, à era eletrônica .

Ouço gritos de mulher, que vêm do andar de cima. Dias depois, saberei que eram gritos de uma amiga. Ela me contará que cinco torturadores a obrigaram a se despir, deram choques elétricos em seus seios e a forçaram a ficar de quatro, nua no chão de cimento.

Na sala ao lado, um torturador obriga um estudante de medicina a segurar as pontas desencapadas do fio que usa na tortura. “Segura esse fio, comuna safado! Já disse para segurar direito. Afinal, quem manda nisso aqui?” Ouço o berro do rapaz; em seguida, o ruído de pancadas. “Não larga o fio! Segura isso direito, se não vai apanhar muito mais!” Novo berro.

Naquela noite, trarão o estudante para minha cela; ele se deitará ao meu lado. Queriam que revelasse o endereço da namorada, mas ele não se lembrava. Não tinha boa memória para endereços. “No fim, eu até me ofereci para levar os caras à casa dela – mas isso não adiantou nada...”

No dia seguinte, serei surpreendido por gritos que não tinha ouvido antes, naquele submundo: “Bate mais, fascista! Bate mais! Bate, que você tá batendo num negro comunista!” Horas depois, saberei que o presidente de um sindicato de metalúrgicos havia enfrentado os torturadores – e todos, na cela se sentirão um pouco redimidos pela coragem suicida daquele operário desconhecido.

De madrugada, um mecânico que dorme na minha cela será levado, uma vez mais, para a sala de interrogatórios. Ele tem menos de 30 anos, é magro e reservado – quase não fala. “Não faça isso comigo não, seu doutor! Pelo amor de Deus, não faça isso comigo. Pelo amor de Jesus Cristo, seu doutor...’”. O torturador modula sua voz, com a máquina de dar choques elétricos. O mecânico grita, pede, implora, volta a berrar. Um velho farmacêutico de 68 anos ronca ao meu lado. Mas os gritos do mecânico não me deixam dormir. Quando o trazem de volta, ele se senta perto de mim; vejo que está bem machucado, estendo a mão e toco seu ombro, num gesto quase instintivo de solidariedade. O mecânico já não é o bicho acuado que parecia ser, pelos gritos que ouvi antes: é um  homem de olhar firme, que me agradece com um sorriso e murmura quase com superioridade – “A barra hoje estava pesada...”

As cenas de violência se sucedem. A máquina de moer gente trabalha sem interrupção. Há sempre um grito no ar, passos ameaçadores no lusco-fusco daquele subterrâneo miserável. Alguém pode estar sendo assassinado, na sala à minha direita – talvez um amigo, quem sabe?

Daquelas paredes imundas, escorre um fio de sangue. O líquido desce vagarosamente, passa entre os corpos adormecidos, contorna os pés inchados, parece que se orienta, na escuridão. Amanhã terá desaparecido. Depois de alguns meses, desaparecerá também da memória nacional. 

Rodolfo konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.