História do Brasil e de Araçariguama

Notícias

Um Pouco da Poesia Interiorana

Dúvidas da Nossa Língua

Essencialidades e Silêncios

SER MÃE...

Antonio Olavo Pereira

Joanyr de Oliveira, Presidente da ANE

Livros

Yeda Prates Bernis e o Eterno

Página Inicial

Editorial

Vencidos da História

O FUTURO ENDEREÇO

 

Sombras do cotidiano

 

Rodolfo konder

 

O homem sentado no chão, os braços sobre os joelhos, olha fixamente para a frente, de modo obstinado e até ríspido – a peça de madeira escura é africana, foi esculpida na Costa do Marfim. Ao lado, a cabeça coroada do rei de Benin, também em madeira escura, veio para o Brasil pelas mãos de meu pai, médico sanitarista que trabalhou durante um ano no interior da África Negra, na esteira da 2ª Guerra Mundial. No topo da estante, à frente dos filmes em vídeo, com suas capas coloridas, Ogum, o santo guerreiro, domina a sala de TV com o seu olhar severo, alguns palmos acima do festivo cavalo de Bali, lembrança gentil de Elton Cardoso. A televisão que há anos me acompanha, o infalível vídeo de muitas cabeças, as gravuras maias trazidas da Guatemala, o pequeno dragão inglês de metal, as gárgulas indianas que agora repousam  nas altas prateleiras do corredor, todos esses objetos que agora acaricio com os olhos me fazem sentir inconscientemente feliz – uma felicidade quase imperceptível, que às vezes nos oferecem as velhas coisas amadas.

Amanhã, as esculturas, as gravuras, os filmes, os livros, o sofá, a mesa de vidro, as estantes de madeira, a televisão, o vídeo e todos os objetos familiares que hoje me cercam e enternecem deslizarão, como eu, pelos declives da noite, esquecidos e desmaterializados. Cada um, no seu devido momento, passará para o lado de lá do tempo, encerrando uma história que, em alguns casos, veio de muito longe. Exemplo: o homem sentado, de cabeça grande e olhar obstinado, nasceu anos atrás numa aldeia praticamente abandonada, às margens de um lago escuro, povoado de crocodilos famintos, das mãos ansiosas de uma mulher infeliz e solitária, mas ainda capaz de sonhar com homens e de reproduzir suas formas na ponta nervosa de uma faca. Exportado para Pretória, África do Sul, junto com outras peças esculpidas na Costa do Marfim, ele me desafiou durante dias com seu olhar obstinado, de cima de uma armação de metal, até que resolvi trazê-lo para o lado de cá do mar. Talvez se vá, um dia, para o interior do Estado, fadado a desaparecer, tornado cinzas, num incendiário conflito de terras em Rio Claro.

Já o desmembrado cavalo de Bali poderá submergir nas corredeiras de um rio tão enfurecido quanto a mão que o lançará no abismo. A história da maioria desses objetos apenas correu paralelamente à minha própria história, estiveram interligadas, mas não previam um destino comum. Quando eu me embrenhar nas florestas impenetráveis do esquecimento, eles nem se darão conta da minha ausência, serão certamente acariciados por outros olhos, inabaláveis na sua função de encantar. Não é o caso de certas presenças menores, quase inapreensíveis, que também me acompanham.

Sempre que morre alguém, ficam os escombros. No plano das relações humanas, ficam o sofrimento arrastado, as manchas de nostalgia, a saudade corrosiva, as imagens inconstantes nos espelhos estilhaçados da memória. Sobram igualmente as propriedades, o carro usado, as roupas, os livros, algumas obras de arte. Ações, talvez. Além disso, porém, há presenças que naufragam conosco, objetos que se desnorteiam, perdem a função sem o nosso comando. A chave perdida no fundo de uma gaveta jamais encontrará novamente a fechadura que a acolhia. Um bilhete ficará abandonado para sempre entre as páginas de um livro. O velho pente de avião, desbotado e sem dois dentes, nunca mais alisará os cabelos de alguém. Nem terá qualquer utilidade o canivete enferrujado que agora se esconde no armário do banheiro. Você afundou, esses pequenos objetos inúteis do cotidiano ficarão boiando, à deriva, como discretos destroços. Um chapéu encardido, duas bengalas, livros que ninguém reabrirá, um chaveiro sem graça, o baralho de desenho oriental, um ingresso usado, uma medalha injusta – são partes do naufrágio.

Abro o jornal e leio que a médica Isaura Pinevski foi assassinada com um tiro no peito, no Campo Belo. O jornal registra ainda as mortes de Alcides Angeloni, Emília Basso Liberato, Genaro Espósito, Maria Milani, entre diversos nomes. Imagino o sofrimento dos seus parentes, a saudade que deixarão entre os amigos, as lembranças difíceis, os legados, as heranças, as questões judiciais, os reverentes comentários dos vizinhos. Depois, tento imaginar como seriam as velhas coisas amadas que tornavam aquelas pessoas felizes, ainda que por fugazes instantes – a cadeira especial, o anel que chegou com o amor, um livro várias vezes lido, a escrivaninha, o gato, a caneca, o sapato que parecia um chinelo. Penso nos escombros que ficarão de cada naufrágio, nos destroços à deriva, em tudo que permanece e também no que mergulha conosco, neste misterioso relacionamento com as pessoas e com os objetos do nosso cotidiano.

 

Rodolfo konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.