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Um Filósofo que Sonha

 

Rodolfo Konder

 

No exato dia em que meu irmão nasceu, num afastado hospital coberto pela neblina de Petrópolis, em 1936, nosso pai, o médico sanitarista Valério Konder, foi preso pela Polícia política de Getúlio Vargas, então ditador. Valério ficou na cadeia durante dois anos (foi companheiro de Graciliano Ramos e aparece algumas vezes em “Memórias do Cárcere”), enquanto nossa mãe, Yone, cuidava sozinha, aos 18 anos, daquele  que era seu primeiro – e único filho, até então, Leandro.

Hoje, mais de 68 anos depois, penso na influência certamente decisiva daqueles primeiros anos de vida na evolução de Leandro e na formação de sua personalidade e de seu caráter. Imagino as inseguranças, as perplexidades, os medos que dominaram aquele menino frágil, freqüentemente doente, profundamente introspectivo.

Nosso pai saiu da prisão modificado pela dura experiência. “Ele era um homem, antes da cadeia – gentil, controlado, afável. Depois, tornou-se outra pessoa, outro homem, agressivo, fechado, explosivo,” conta nossa mãe. Leandro se viu praticamente atropelado por aquele homem estranho, misterioso, que emergia do passado e o obrigava a brincar sozinho no jardim, durante o dia, para “não continuar agarrado às saias de sua mãe” – que ficava fechada dentro de casa . Outro exemplo: certa noite,  Leandro chorou. Nosso pai foi ver do que se tratava e acabou por lhe aplicar a primeira palmada de sua vida, com uma advertência: “se continuar a chorar, vai levar outra palmada”. Leandro engoliu o choro – e nunca mais chorou . Estava com menos de 3 anos – e nunca mais chorou.

A influência do nosso pai sobre ele – e sobre todos nós, eu e nossa irmã Luiza – também foi fundamental para nos interessarmos pela leitura. Nisso, Leandro sempre se destacou. Deste menino, ele lia muito. Leu tudo que se possa imaginar. Até hoje, ler é sua atividade essencial. Metódico, disciplinado, lê, organiza, registra, escreve. Já publicou quase 30 livros, alguns grandes sucessos de crítica e venda, como “Marxismo e Alienação”, “Kafka, vida e obra”, “Os marxistas e a arte”, “Introdução ao fascismo” ou “A democracia e os comunistas no Brasil”, para citar apenas alguns títulos.

Preso e torturado em 1970, exilou-se em seguida e morou na Alemanha, durante 6 anos; depois, na França, até seu regresso ao Brasil, em 1978. Mas jamais fala da prisão e da tortura – assim é meu irmão querido, um homem calmo, controlado, que mantém uma relação cerimoniosa com o mundo.

Formado em Direito, professor de Filosofia da Educação, na PUC do Rio de Janeiro – onde os alunos o adoram – mestre, doutor, conferencista, ensaísta, ficcionista, articulista do Jornal do Brasil, Leandro recebeu medalha do Congresso por seus “relevantes serviços à causa da democracia” e foi eleito “Intelectual do Ano”, em 2002. Já mereceu diversas homenagens por suas realizações como escritor e educador. Domina 5 línguas, além do português.

Até hoje, fala de nosso pai com respeito. Mantém-se num patamar quase inatingível da integridade. Jamais mente. Exemplar de uma espécie em extinção, é um homem inabalavelmente ético,generoso, solidário. Um filósofo que sonha.Sonha muito,sonha sempre. Mas nunca chora.            

Rodolfo Konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da FMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.