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A Beleza da Arte Escrita Caio Porfírio Carneiro A geografia é a
fazenda Acemira, o fulcro é o jantar onde os
herdeiros se reúnem para decidirem do destino dela. E nem é propriamente
isto. Através das personagens, particularmente as femininas, o pêndulo
descritivo e narrativo não pára. Ele é um fuso veloz, que
vai ao passado e volta ao presente. Os pratos do jantar se sucedem, a culinária é requintada, ágape sofisticado, com
bebidas e sobremesa, última ceia de uma fazenda cafeeira, que se foi
esvaindo, deixando para trás os áureos tempos. Ainda não é bem isto também,
ao longo da história de Acemira, porque, para além
dos diálogos entre as personagens, para além do jantar requintado, exsurge uma profusão de sensações variadas, de pulsações
constantes, que vão das florações de vidas vegetais às dos insetos, dos
pássaros, das criações, das criaturas todas, dos seres vivos em geral, numa
evidência- sem apelo metafórico- de fulgor e perecimento. Acemira
é a Vida em tudo, até nos pingos d´água, e a
fragilidade do ciclo vital, numa demonstração espantosa, poderíamos dizer
filosófica, de que tudo é precário na face da terra. Acontece que esta
notável escritora, que escreve tão bem, não traçou caminhos formais para
compor a história. É uma obra multifacetada, polivalente,
poliédrica, numa variação surpreendente e detalhada de espelhos e contra-espelhos,
que se unem e compõem a Alma de Acemira. Um
jogo cênico ou um detalhe qualquer deste livro, de uma flor, de uma criança
ou de um gesto adulto, merece toda uma análise. A ótica da autora é tão
abrangente e sensível que qualquer descrição de comportamento, ação ou
ambiente, é quase um conto. Se é uma pincelada
ligeira, é quase um hai-cai. Pouco
vimos
uma captação tão ampla, cósmica mesmo, partindo de uma simples fazenda. O
descritivo e o narrativo estão de tal maneira interligados que ambos, em qualquer
situação, latejam a mesma dimensão criadora. Tudo aqui é
novidade e surpresa, da riqueza estilística à tensão corpórea no
próprio “corpo” de Acemira. O amor, o desamor, a
irresponsabilidade, a benquerença, o ódio, a alegria... os sentimentos todos,
enfim, palpitam ainda ou palpitaram nela. As personagens femininas são quase
palpáveis, cada uma, dentro da irmandade, um universo à parte; as masculinas voleiam da boa ou má conduta, dos seus hábitos ao quase
ódio; as infantis pouco alegram os ambientes, antes visualizam o que ocorre,
e vivem seus instantes de crianças; e os colonos são sempre colonos. Mas a riqueza
vocabular da autora, de alcance cultural humanístico,
científico e lingüístico, onde o idioma francês vem ao vivo, onde até
o corvo crocita o seu nevermore, - quem sabe uma
advertência de Poe -, onde, enfim, toda a cultura pessoal de Sônia Machiavelli dá sinais de vida no enredo, que caminha na
primeira pessoa e faz jogo quase lúdico com a terceira, nos tais espelhos e
contra-espelhos, nunca se fecha numa redoma de finos brilhos, eis que o lado
humano é que importa sobre todos e sobre tudo, eis que não perde de vista o chão
de Acemira. Parece um contraste,
quando não é. Toda essa soma de conhecimentos da autora vitaliza a ficção. E
isto é notável, eis que não é uma obra para os menos afeitos à boa arte
literária e , ao mesmo tempo, em subjacência, é uma rica história simples sem
ser fácil. Esse formal explícito é emblemático: pereniza, no tempo e no
espaço, Acemira. E esta é a marca sagrada da verdadeira
arte escrita, em toda a sua história, desde as belezas rupestres. Embora Acemira se situe na região francana,
ela é palpável e corpórea, quase humana. Exaure-se num jantar, pois já se
vinha exaurindo, e se espiritualiza, torna-se transcendente. Notável. Parafraseando distorcidamente a autora, the best way para se escrever um
bom livro é ter talento e trabalhar com amor e persistência no como dizer,
porque celui qui ne travaille pas a sua arte criadora é melhor – numa expressão
bem nossa – tirar o cavalo da chuva, porque jamais receberá a bênção dos
deuses e jamais comoverá os corações. Jantar na Acemira, de Sônia Machiavelli
Corrêa Neves, Franca, 2005, nada deve ao que de melhor se escreveu, em arte
ficcional, este ano, no Brasil. Sem a divulgação merecida, sem alcançar a
grande mídia, que convida para o “jantar” tão poucos, na maioria
estrangeiros, este livro ficará. Caio Porfírio
Carneiro é escritor, crítico literário e secretário administrativo da União
Brasileira de Escritores. |
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